domingo, março 10, 2013

Canône Literário e Palimpsesto

 
 
Drawing Hand - M.C Escher
 
O estabelecimento do cânone diz respeito a um sistema de valores. Em sua etimologia, o termo cânone, vem do grego kanón e significava uma regra, um modelo ou norma representada por uma obra ou um poeta. A Igreja utilizou este termo para designar uma lista de santos e também uma seleção de livros reconhecidos como dignos de autoridade. Ou seja, as origens do termo estão fundamen...tadas em um processo de escolha e seleção de autores, livros e santos.
Segundo Compagnon (2003:27), a literatura importou o modelo teológico de cânone a partir do século XIX, “época da ascensão do nacionalismo , quando os grandes escritores se tornaram os heróis dos espíritos das nações”. Percebemos que o cânone literário teria seu significado enraizado no nacionalismo, promovendo as obras que melhor descrevessem o sentimento pela nação. Possivelmente, essa conduta tinha por objetivo construir uma memória coletiva, um modelo que assegurasse seu domínio sobre as culturas e o pensamento.
A crítica literária Leyla Perrone-Moisés (1998), a partir das leituras que fizera da obra de Ernest Curtius, assegura que foram os filólogos alexandrinos – muito antes, portanto, dos nacionalismos burgueses – os primeiros a fazerem uma seleção de autores literários para serem lidos em escolas de gramática. Leyla Perrone afirma ainda que na Antiguidade Clássica o conceito de “escritor-modelo” estava relacionado ao nível de erudição da linguagem, pois era utilizado também nas escolas de gramática. O processo de formação de listas de “preferências” também fora adotada no século II, em Roma, para classificar pessoas conforme acúmulo de bens materiais. Na literatura nasce o cânone clássico na Idade Média, com Dante e os autores selecionados para a “bella scuola”. O cânone moderno inicia-se no Renascimento italiano e se estende para o domínio francês. A imposição à universalidade do cânone só começa a perder suas forças no século XVIII quando o juízo estético deixou de ser considerado universal, e os ‘clássicos’ perderam o status de modelos absolutos na eternidade da vida da obra artística.
Leyla Perrone-Moisés (1998) afirma a possibilidade de explicação do cânone moderno a partir da teoria kantiana, em que o juízo estético é um ato de consentimento, ou seja, ao longo de um determinado período, uma obra e seu escritor que tiveram maior aceitação, independentes das mudanças ocorridas nas sociedades, tornam-se obras-modelo. Dessa maneira, a sociedade, não raro, é seduzida por um discurso dominante que lhe faz assimilar as decisões dos que ditam as regras. No desaguar desse processo encontra-se a constituição do “clássico”, conceito mais ligado à noção de nobreza e soberania. Desse modo, tanto a idéia do cânone literário, como o clássico da literatura, são processos pautados na hierarquização da arte. Citamos como crítica, a esse sistema de hierarquização e imposição das obras, a ironia de Barthes: “ ‘A literatura é aquilo que se ensina’, variação da falsa etimologia consagrada pelo uso: ‘Os clássicos são aqueles que lemos em classe’. ”
Retomando Barthes, “clássico são aqueles que lemos em classe”, convém ressaltar que a consolidação da função pedagógica do cânone literário dá-se no século XX. Procura-se indicar leituras formadoras essenciais ao currículo dos jovens e ensiná-los a “valorizar” as obras de qualidade estética. Na maioria das vezes, o professor não se encontra preparado para a escolha e leitura dos livros, reduzindo a literatura e seus autores a uma lista solicitada pelos vestibulares.
O paideuma (grupo seleto de obras e autores), baseado no gosto pessoal e experiência do crítico enquanto leitor/escritor, tem por finalidade, sobretudo, manter a hierarquia na arte e banir da literatura qualquer elemento que contamine a erudição da linguagem e a perfeição da forma eleita como modelo. O fato de o cânone, desde o princípio, constituir-se com base na escolha realizada por um sujeito crítico e fundamentar-se como a base de determinado conhecimento, seja literário, teológico ou gramatical, não lhe torna menos subjetivo que qualquer julgamento de valor. É possível entender, então, que o cânone corresponde a uma das expressões do discurso de poder, dominante, podendo ser entendido como um dos filhos da prática burguesa. Essa concepção é a que norteia os teóricos dos estudos culturais.
Entenda-se paideuma como “justaposição das partes vivas de uma cultura, corpo de conhecimento que funciona.” (Campos,1983:146). Listagem , lista, cânone.
Jorge Luís Borges (2000) no ensaio O Enigma da Poesia, que faz parte do livro Esse Ofício do Verso, diz que a hierarquia do cânone literário se forma pelos nomes dos escritores. Para Borges, que é crítico e escritor de poesia e ficção, se um poema foi escrito por um grande poeta ou não, isso só importa aos historiadores da literatura. Diz Borges (2000: 24):
Suponhamos, só para argumentar, que eu tenha escrito um belo verso; tomemos como uma hipótese de trabalho. Uma vez escrito, esse verso não me serve mais, porque, como já disse, esse verso veio do Espírito Santo, do subconsciente, ou talvez de algum outro escritor. Muitas vezes descubro que estou apenas citando algo que li tempos atrás, e isso se torna uma redescoberta. Melhor seria, talvez, que os poetas fossem anônimos.
Segundo os argumentos de Borges é possível relacionar à idéia de hierarquização da arte à formação “elitista” da literatura. Enquanto grandes nomes sustentarem a literatura de um país, conserva-se a eleita ‘alta literatura”, a cultura de ‘valor’ reservada para poucos neófitos.
Harold Bloom (2001), em O Cânone Ocidental: os livros e a escola do tempo, defende a idéia de que o público leitor não deve “perder” tempo de leitura com obras que não façam parte de um cânone. Seu ideal estético o faz julgar as literaturas de protesto como “a estratégia dos ressentidos”, donos de uma prática panfletária de exigir direitos que estão mais fora da esfera da literatura que dentro dela. Diz Bloom (2001: 25): “precisamos ensinar mais seletivamente, buscando os poucos que têm capacidade de tornar-se leitores e escritores altamente individuais”.
Segundo Harold Bloom, não podemos reduzir o texto literário a um mero panfleto ideológico, devemos interrogar a obra como valor estético e não a ‘cor do umbigo’ do autor. Não importa se a literatura é feminina, masculina ou neutra, importa que se constitua como linguagem estética e como tal faça surgir questionamentos universais sobre o ser e sua existência, para além de gêneros, classes ou etnias.
Achamos relevantes os argumentos de Harold Bloom, pois entendemos que a literatura ao se constituir como fenômeno artístico é um palimpsesto raspado e reescrito ao longo dos séculos. As grandes obras permanecem na história literária pelo seu valor ontológico e estético, pois as ideologias variam conforme as culturas e o tempo. É preciso que a linguagem e o valor estético ocupem o primeiro plano tanto no discurso crítico quanto na recepção das obras por parte do leitor. Deixemos as preocupações meramente ideológicas para seu campo específico, para o domínio da sociologia ou antropologia cultural. Cuidemos das obras, sabendo que todo literatura é também ideologia, é palavra como forma de ação. Mas ideologia pura, exclusões, conflitos, guerras panfletárias habitam os jornais e a tv, não são e nunca serão assuntos do horizonte específico do texto literário, onde habitam o ser, a existência maculada pelo cotidiano, os poetas, os leitores e também o sonho, o zéfiro, as sílfides e os gnomos. Por que não?
A problemática da historiografia literária tem ocupado posição de destaque nas indagações da crítica atual. Faz-se, hoje, o questionamento da concepção diacrônica do cânone instituído em torno das obras. Diz Leyla Perrone Moisés (1998:27):“Apesar de um Vico, que, como os gregos, estava mais interessado no Ser do que no Devir e propunha uma história cíclica de corsi e ricorsi, apesar do irracionalismo romântico que ainda hoje (e talvez cada vez mais) repercute no pensamento ocidental, a concepção da história que predominou e se instalou como disciplina acadêmica é uma concepção linear, causalista e finalista. A história literária que se criou e se formou sob a égide da história geral positivista é condicionada por essa lógica da sucessão.”
A tarefa que se impõe na modernidade, portanto, segundo Leyla Perrone, é repensar o devir dessa sucessão literária positivista, questionando o império da diacronia (percurso histórico linear) que impõe valores mortos do passado à escrita do presente. É preciso que as obras do presente indiquem sincronicamente (tempo atual) suas raízes e o que virá, ou seja, seus sucessores. Citamos T. S Eliot e Jorge Luís Borges como defensores dessa revisão do cânone, ou seja, da corrente revisionista. Salientamos que, para Leyla Perrone, a ausência do cânone na literatura pode afetar a qualidade de sobrevivência das obras e dos leitores.


BARTHES, Roland (1987). Crítica e Verdade. Lisboa: Edições 70.
BLOOM, H (2001). O Cânone Ocidental: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva.
BORGES, J. L (2000). “O Enigma da Poesia”. In: Esse Ofício do Verso. Trad. José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras.
CAMPOS, Augusto de (1985). Revisão de Kilkerry. São Paulo: Brasiliense.
COMPAGNOM, Antoine (2003). O demônio da teoria. Literatura e senso comum. Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão & Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte, UFMG.
ELIOT, T.S. (1956). The Frontiers of Criticism. On Poetry and Poets. New York: Farrar Strauss.
FISH, Ernest (1985). In: KARL, Frederic. O moderno e o Modernismo. A Soberania do Artista. Rio de Janeiro: Imago.
PERRONE-MOISÉS, L (1998). Altas Literaturas: Escolha e Valor na Obra Crítica de Escritores Modernos. São Paulo: Companhia da Letras.