Segundo Antoine Compagnon (2003),
em O Demônio da Teoria, o ponto mais controvertido dos estudos literários é o
lugar que cabe ao autor. Diz que o interessante de fato, nesse debate que é omais
penoso da teoria e crítica literária, é o papel do autor designado pelo nome
intenção, esta suscita questões importantes como a relação entre o texto e seu
autor e a sua importância para a
instauração do sentido ou significação da obra. Diz Compagnon (2003: 47):
“A antiga idéia corrente identificava o
sentido da obra à intenção do autor; circulava habitualmente no tempo da
filologia, do positivismo, do historicismo. A idéia corrente moderna (e ademais
muito nova) denuncia a pertinência da intenção do autor para determinar ou
descrever a significação da obra; o formalismo russo, os new critics falavam de
intentionalfallacy, ou de ‘ilusão intencional’, de ‘erro intencional’: o
recurso à noção de intenção lhes parecia não apenas inútil, mas prejudicial aos
estudos literários. O conflito se aplica ainda aos partidários da explicação
literária como procura da intenção do autor (deve-se procurar no texto o que o
autor quis dizer), e aos adeptos da interpretação literária como descrição das
significações da obra (deve-se procurar no texto o que ele diz, independente
das intenções do seu autor). Para escapar dessa alternativa conflituosa e
reconciliar os irmãos inimigos, uma terceira via, hoje muitas vezes
privilegiada, aponta o leitor como critério de significação literária: é uma
idéia corrente contemporânea [...]”
A questão da intenção na leitura
do texto literário é bastante polêmica, poisfaz surgir duas grandes querelas:
se a intenção do autor domina a cena da
leitura, a crítica literária e a teoria
tornam-se inúteis, se por outro lado o autor “morre” parece morrer com ele
também o gesto humano e ontológico da gestação da obra literária. Diz Compagnon
(2003:49):
“A intenção, e mais ainda o
próprio autor, ponto de partida habitual da explicação literária desde o século
XIX, constituíram o lugar por excelência do conflito entre os antigos (a
história literária) e os modernos (a nova crítica) nos anos sessenta”.
Entre os teóricos modernos da
década de sessenta, destacamos Roland Barthes e Michel Foucault. Comecemos pelo
primeiro. Barthes em 1968, em um artigo intitulado La Mort de L’Auteur (A Morte
do Autor) parecia afirmar o “slogan anti-humanista” da teoria e crítica do
texto literário:
“A escritura é a destruição de toda voz, de
toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge
o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda a identidade, a
começar pelo corpo que escreve.” (Roland Barthes, 1988: 65)
Barthes enfatiza a questão da não
existência do autor fora ou anterior à linguagem. Procurando apresentar a idéia
do autor como sujeito social e historicamente constituído, Barthes o vê como um
produto do ato de escrever - é o ato de escrever que faz o autor e não o
contrário. Para ele um escritor será sempre o imitador de um gesto ou de uma
palavra anteriores a ele, mas nunca originais, sendo seu único poder mesclar
escritas. Barthes retira a ênfase de um sujeito que tudo sabe, unificado, intencionado
como o "lugar" de produção da linguagem, esperando assim libertar a
escrita do despotismo da obra - o livro. Barthes cita os escritores franceses
para convalidar seus argumentos:
“Apesar do império do Autor ser ainda muito
poderoso (a nova crítica muitas vezes não fez mais do que consolidá-lo), é
sabido que há muito certos escritores vêm tentando abalá-lo. Na França,
Mallarmé, sem dúvida o primeiro, viu e previu em toda a sua amplitude a
necessidade de colocar a própria línguano lugar daquele que dela era até então
considerado proprietário; para ele, como para nós, é a linguagem que fala, não
o autor; escrever é, através de uma impessoalidade prévia – que não se deve em
momento algum confundir com a objetividade castradora do romancista realista -,
atingir esse ponto onde só a linguagem
age, “performa”, e não “eu”: toda a poética de Mallarmé consiste em suprimir o
autor em proveito da escritura (o que vem a ser, como se verá, devolver ao
leitor o seu lugar). Valery, todo embaraçado numa psicologia do Eu, muito
edulcorou a teoria mallarmeana, mas, reportando-se, por gosto do classicismo, à
retórica, não cessou de colocar em dúvida e em derrisão o Autor, acentuou a
natureza lingüística e como que “arriscada” da
sua atividade, e reivindicou ao longo de todos os seus livros em prosa a
favor da condição essencialmente verbal da literatura, face à qual todo recurso
à interioridade do escritor lhe parecia pura superstição.”
O autor cede lugar, na teoria de
Barthes, à escritura, aqui o escritor perde o caráter pessoal e picologizante,
assumindo o estatuto de um ser de linguagem. A obra parece ganhar mais
autonomia e polissemia. Como diria Mallarmé: a literatura não se faz com
idéias, mas com palavras”. Observamos também que o leitor assume a ribalta, o
papel mais importante. O comentário sobre o texto ganha também mais autonomia e
rigor, pois tem que fazer valer a linguagem, antes negligenciada em impressões
pessoais sobre gosto e vida do autor, fofoca bigráfica-literária.
Foucault, em 1969, proferiu uma
conferência com o título O Que é um Autor? Ele diz que, na História, só
importava a autoria do texto pelo seu grau de transgressão, pois seus autores,
nesse caso, deveriam ser punidos. Frisa que na antigüidade textos literários
como as epopéias, tragédias, comédias, etc circulavam sem grande preocupação
sobre quem os escrevera. É o caso famoso de Homero, que até hoje não se sabe se
de fato existiu, mas importa, para nós, que tenha produzido a Ilíada e a
Odisséia. Já os textos científicos,
deveriam ser avaliados pelo nome do autor, sobretudo, os tratados de medicina.
No correr dos séculos os textos
científicos passaram a ser validados pela seu conjunto de verdades
demonstráveis.No final do século XVIII e no correr do
século XIX, com a instituição do sistema de propriedade, possuidor de regras
estritas sobre direitos do autor e relações autor/editor, é que o gesto
carregado de riscos da autoria, enquanto transgressão, segundo Foucault, passou
a se constituir um bem, preso àquele sistema.
Na teoria de Foucault (1992:46),
a “função-autor”, dispensada hoje no discurso científico já garantido pelo
sistema, sobrevive no discurso literário. A "função-autor" não se
constrói simplesmente atribuindo um texto a um indivíduo com poder criador, mas
se constitui como uma "característica do modo de existência, de circulação
e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade.” Isso
implica que tal ou qual discurso deve ser recebido de certa maneira e que deve,
numa determinada cultura, receber um certo estatuto. O que faz de um indivíduo
um autor é o fato de, através de seu nome, delimitarmos, recortarmos e
caracterizarmos os textos que lhes são atribuídos. A “função-autor” é, pois,
uma construção histórica e ideológica.
Compagnon (2003: 51) chama atenção para o fato de que sem
origem, com a morte do autor, o texto é um tecido de citações:
“[...] a noção de intertextualidade se infere, também ela, da morte do
autor. Quanto à explicação, ela desaparece com o autor, pois que não há sentido
único, original, no princípio, no fundo do texto. Enfim, último elo do novo
sistema que se deduz inteiramente da morte do autor: o leitor e não o autor, é
o lugar onde a unidade do texto se produz, no seu destino, não na sua origem;
mas esse leitor não é mais pessoal que o autor recentemente demolido, e ele se
identifica também a uma função: ele é ‘esse alguém’ que mantém reunidos, num
único campo, todos os traços de que é constituída a escrita”
Assinala ainda Compagnon que, a
partir de 1968, a morte do autor assinala a passagem do estruturalismo para o
pós-estruturalismo. A libertação da autoria, coloca a noção de texto numa
posição revolucionária, pois recusa o sentido único significa também recusar
Deus e sua hipótese, a razão, a ciência e a lei. O leitor passa a dominar a
cena da leitura aberta a uma gama de possibilidades de sentidos.
Diz Maria Helena Dias (2000) que a noção de
intertextualidade, surgida na década de 60, se constitui em um modo de pensar
sobre textos e de ler textos, nascido da proposta desconstrucionista abraçada
pelos teóricos e críticos pós-estruturalistas. Para tais autores, escritores ao
criar textos ou usar palavras o fazem com base em todos os outros textos e
palavras com que deparam e os leitores lidam com os textos da mesma forma. A
vida cultural é, pois, entendida como uma série de textos em intersecção com
outros textos que possam tê-lo afetado ou que afetam o próprio crítico ao
lê-lo.
A noção de intertextualidade é
aplicável não só ao texto literário, mas a todo e qualquer texto, verbal ou
não, a noção tradicional de autoria é, portanto, abolida. Subvertendo a idéia
do texto como totalidade hermética e auto-suficiente, coloca em seu lugar o
fato de que toda obra literária ocorre efetivamente na presença de outros
textos à semelhança dos palimpsestos. Torna, também, menos claros os contornos
do livro dispersando sua imagem de totalidade em um tecido ilimitado de
conexões, associações, fragmentos, textos e contextos.
Palimpsesto [do grego. palímpsestos, 'raspado
novamente', pelo lat. palimpsestu.]. S.m. 1. Antigo material de escrita,
principalmente o pergaminho, usado, em razão de sua escassez ou alto preço,
duas ou três vezes, mediante raspagem do texto anterior. 2. Manuscrito sob cujo
texto se descobre (em alguns casos a olho desarmado, mas na maioria das vezes
recorrendo a técnicas especiais, a princípio por processo químico, que
arruinava o material, e depois por meio da fotografia, com o emprego de raios
infravermelhos, raios ultravioletas ou luz fluorescente) a escrita ou escritas
anteriores: "Inutilizei um caderno de papel almaço, e o primeiro rascunho,
à força de rasuras, emendas, chamadas, interversões, acabou por ser para mim
próprio o mais impenetrável palimpsesto." (Aquilino Ribeiro, Lápides
partidas, p.120). Dicionário Eletrônico Aurélio, Nova Fronteira. (apud. Maria
Helena Dias; Hipertexto – o labirinto Eletrônico. Uma experiência Hipertextual.
Tese de doutorado, Unicamp, 2000).
Veja nos quadros abaixo, exemplos de Palimpsesto:
O conceito de intertextualidade
se liga à questão da heterogeneidade da obra artística. Segundo George Yudice
(1990:53), essa manifestação do heterogêneo estávinculada ao pensamento de
Heidegger, que relaciona a manifestação do heterogêneo à manifestação da linguagem. Em certo
sentido, diz Yuidice, a linguagem seria a morada do ser, e o ser a manifestação
de uma heterogeneidade irredutível. Frisa que é importanteapreender esse
conceito pela seguintes razão: “para vários teóricos - como Julia Kristeva ou os teóricos da
desconstrução – a arte moderna está totalmente preocupada com a questão da
heterogeneidade.”
Diz Yudice (1990: 54) que para
Mikhail Bakthin, a linguagem não pertence a ninguém. As pessoas só podem
apropriar-se da própria maneira de falar e, mesmo assim, sua maneira de ser
varia de acordo com quem está falando. Ele encontrou uma maneira muito flexível
para definir como a diversidade de outras falas afeta a nossa própria fala,
traçando um modelo para definir certo tipo de obra estética. Para ele, o
romance seria um modelo do que chama ‘diversidade verbal do mundo’ ou
‘heteroglossia’. Para Bakhtin, que não separa totalmente fala de ação, o
indivíduo está agindo enquanto fala.
Kristeva converteu esse conceito
de ‘heteroglossia’, de Bakhtin, em intertextualidade. Ela textualizou-o de modo
a aplicá-lo à obra de arte ou mais especificamente a obra literária. Mas convém
frisar que Bakhtin fazia questão de não separar a obra de arte da vida cotidiana.
Ele usou sua teorias para estudar a obra do autor realista Dostoievski, criando
o conceito de polifonia.
Júlia Kristeva foi a
primeira a empregar a expressão intertextualidade cuja raiz latina, o termo
"intertexto", se refere, no ato de tecer, ao entrelaçamento dos fios.
Para Kristeva (1974) qualquer texto é construído em termos de um mosaico de
citações, qualquer texto é a absorção e a transformação de outro. Diz que o texto "é uma permutação de
textos, uma intertextualidade: no espaço de um texto, vários enunciados, vindos
de outros textos, cruzam-se e neutralizam-se". Mencionou a palavra
intertextualidade, pela primeira vez, em um ensaio publicado nos finais da
década de 1960. Ela provocou um abalo na idéia cristalizada e estabelecida sobre
o autor como única fonte do texto, afirmando que tanto uma mesa posta para um
jantar como um poema, enquanto sistemas de significantes são constituídos de
sistemas significantes anteriores. Ela
alterou a ótica do trabalho de "escritura" como produto de um único
autor, concebe a escritura como fonte nascida do entrecruzamento com outros
textos e estruturas da própria linguagem.
Barthes( 1988) também teorizou
sobre a intertextualidade: "Qualquer texto é um novo
tecido de citações passadas. Pedaços de código, modelos rítmicos, fragmentos de
linguagens sociais, etc, passam através do texto e são redistribuídos dentro
dele visto que sempre existe linguagem antes e em torno do texto."
À luz do conceito de
intertextualidade o ato de escrever é sempre uma interação que também é uma
retomada e troca de um texto com o outro. Essa reescrita que traz ou desloca
para o primeiroplano textos ou traços de vários textos, de forma consciente ou
não, desloca a validade da intenção do autor e coloca em primeiro plano o leitor.
Este não é mais entendido como um mero receptor passivo, mas um segundo
produtor da significação, aberto às possibilidades de leitura que a fabulação
da linguagem da obra e seu próprio imaginário permitir. Podemos falar então de
singularidadedo autor, jamais da sua originalidade. Essa última noção perdeu o
seu valor crítico.
BAKHTIN, M.M (1997). Problemas da
Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
BARTHES, R (1980). Aula. São
Paulo: Editora Cultrix.
___________ (1988). O Prazer do
Texto. Lisboa - Portugal, Edições 70.
___________(1988). “A morte do
autor”. In: O Rumor da Língua. São Paulo: Brasiliense.
COMPAGNOM, Antoine. O demônio da
teoria. Literatura e senso comum. Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão &
Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte, UFMG, 2003.
FOUCAULT, Michel (1992) O que é
um autor?. Vega: Passagens. Tradução de Antonio F. Cascais e Edmundo Cordeiro
_________________ (1990). As
Palavras e as Coisas. São Paulo, Martins Fontes.
KRISTEVA, Julia (1974).
Introdução à Semanálise. São Paulo, Perspectiva.
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(2000). Hipertexto – O Labirinto Eletrônico. Uma Experiência Hipertextual. Tese
de doutorado, Faculdade de Educação, São Paulo: UNICAMP.
YUDICE, George (1990). O
Pós-Moderno em Debate. Entrevista concedida a Eneida Maria de Souza, Wander
Melo Miranda. (faculdade de letras da Universidade Federal de Minas Gerais) e
Roberto Barros de Carvalho. In: Ciência Hoje. Vol. 11, nº 62. março, 1990.