sábado, março 16, 2013

A Morte do Autor e Palimpsesto






Segundo Antoine Compagnon (2003), em O Demônio da Teoria, o ponto mais controvertido dos estudos literários é o lugar que cabe ao autor. Diz que o interessante de fato, nesse debate que é omais penoso da teoria e crítica literária, é o papel do autor designado pelo nome intenção, esta suscita questões importantes como a relação entre o texto e seu autor e a sua importância  para a instauração do sentido ou significação da obra. Diz Compagnon (2003: 47):

“A antiga idéia corrente identificava o sentido da obra à intenção do autor; circulava habitualmente no tempo da filologia, do positivismo, do historicismo. A idéia corrente moderna (e ademais muito nova) denuncia a pertinência da intenção do autor para determinar ou descrever a significação da obra; o formalismo russo, os new critics falavam de intentionalfallacy, ou de ‘ilusão intencional’, de ‘erro intencional’: o recurso à noção de intenção lhes parecia não apenas inútil, mas prejudicial aos estudos literários. O conflito se aplica ainda aos partidários da explicação literária como procura da intenção do autor (deve-se procurar no texto o que o autor quis dizer), e aos adeptos da interpretação literária como descrição das significações da obra (deve-se procurar no texto o que ele diz, independente das intenções do seu autor). Para escapar dessa alternativa conflituosa e reconciliar os irmãos inimigos, uma terceira via, hoje muitas vezes privilegiada, aponta o leitor como critério de significação literária: é uma idéia corrente contemporânea [...]”

A questão da intenção na leitura do texto literário é bastante polêmica, poisfaz surgir duas grandes querelas: se  a intenção do autor domina a cena da leitura, a crítica literária  e a teoria tornam-se inúteis, se por outro lado o autor “morre” parece morrer com ele também o gesto humano e ontológico da gestação da obra literária. Diz Compagnon (2003:49):

 “A intenção, e mais ainda o próprio autor, ponto de partida habitual da explicação literária desde o século XIX, constituíram o lugar por excelência do conflito entre os antigos (a história literária) e os modernos (a nova crítica) nos anos sessenta”.

Entre os teóricos modernos da década de sessenta, destacamos Roland Barthes e Michel Foucault. Comecemos pelo primeiro. Barthes em 1968, em um artigo intitulado La Mort de L’Auteur (A Morte do Autor) parecia afirmar o “slogan anti-humanista” da teoria e crítica do texto literário:

“A escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda a identidade, a começar pelo corpo que escreve.” (Roland Barthes, 1988: 65)

Barthes enfatiza a questão da não existência do autor fora ou anterior à linguagem. Procurando apresentar a idéia do autor como sujeito social e historicamente constituído, Barthes o vê como um produto do ato de escrever - é o ato de escrever que faz o autor e não o contrário. Para ele um escritor será sempre o imitador de um gesto ou de uma palavra anteriores a ele, mas nunca originais, sendo seu único poder mesclar escritas. Barthes retira a ênfase de um sujeito que tudo sabe, unificado, intencionado como o "lugar" de produção da linguagem, esperando assim libertar a escrita do despotismo da obra - o livro. Barthes cita os escritores franceses para convalidar seus argumentos:

“Apesar do império do Autor ser ainda muito poderoso (a nova crítica muitas vezes não fez mais do que consolidá-lo), é sabido que há muito certos escritores vêm tentando abalá-lo. Na França, Mallarmé, sem dúvida o primeiro, viu e previu em toda a sua amplitude a necessidade de colocar a própria línguano lugar daquele que dela era até então considerado proprietário; para ele, como para nós, é a linguagem que fala, não o autor; escrever é, através de uma impessoalidade prévia – que não se deve em momento algum confundir com a objetividade castradora do romancista realista -, atingir  esse ponto onde só a linguagem age, “performa”, e não “eu”: toda a poética de Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da escritura (o que vem a ser, como se verá, devolver ao leitor o seu lugar). Valery, todo embaraçado numa psicologia do Eu, muito edulcorou a teoria mallarmeana, mas, reportando-se, por gosto do classicismo, à retórica, não cessou de colocar em dúvida e em derrisão o Autor, acentuou a natureza lingüística e como que “arriscada” da  sua atividade, e reivindicou ao longo de todos os seus livros em prosa a favor da condição essencialmente verbal da literatura, face à qual todo recurso à interioridade do escritor lhe parecia pura superstição.”

O autor cede lugar, na teoria de Barthes, à escritura, aqui o escritor perde o caráter pessoal e picologizante, assumindo o estatuto de um ser de linguagem. A obra parece ganhar mais autonomia e polissemia. Como diria Mallarmé: a literatura não se faz com idéias, mas com palavras”. Observamos também que o leitor assume a ribalta, o papel mais importante. O comentário sobre o texto ganha também mais autonomia e rigor, pois tem que fazer valer a linguagem, antes negligenciada em impressões pessoais sobre gosto e vida do autor, fofoca bigráfica-literária.
Foucault, em 1969, proferiu uma conferência com o título O Que é um Autor? Ele diz que, na História, só importava a autoria do texto pelo seu grau de transgressão, pois seus autores, nesse caso, deveriam ser punidos. Frisa que na antigüidade textos literários como as epopéias, tragédias, comédias, etc circulavam sem grande preocupação sobre quem os escrevera. É o caso famoso de Homero, que até hoje não se sabe se de fato existiu, mas importa, para nós, que tenha produzido a Ilíada e a Odisséia.  Já os textos científicos, deveriam ser avaliados pelo nome do autor, sobretudo, os tratados de medicina.
No correr dos séculos os textos científicos passaram a ser validados pela seu conjunto de verdades demonstráveis.No final do século XVIII e no correr do século XIX, com a instituição do sistema de propriedade, possuidor de regras estritas sobre direitos do autor e relações autor/editor, é que o gesto carregado de riscos da autoria, enquanto transgressão, segundo Foucault, passou a se constituir um bem, preso àquele sistema.
Na teoria de Foucault (1992:46), a “função-autor”, dispensada hoje no discurso científico já garantido pelo sistema, sobrevive no discurso literário. A "função-autor" não se constrói simplesmente atribuindo um texto a um indivíduo com poder criador, mas se constitui como uma "característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade.” Isso implica que tal ou qual discurso deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto. O que faz de um indivíduo um autor é o fato de, através de seu nome, delimitarmos, recortarmos e caracterizarmos os textos que lhes são atribuídos. A “função-autor” é, pois, uma construção histórica e ideológica.
Compagnon (2003: 51) chama atenção para o fato de que sem origem, com a morte do autor, o texto é um tecido de citações:

“[...] a noção de intertextualidade se infere, também ela, da morte do autor. Quanto à explicação, ela desaparece com o autor, pois que não há sentido único, original, no princípio, no fundo do texto. Enfim, último elo do novo sistema que se deduz inteiramente da morte do autor: o leitor e não o autor, é o lugar onde a unidade do texto se produz, no seu destino, não na sua origem; mas esse leitor não é mais pessoal que o autor recentemente demolido, e ele se identifica também a uma função: ele é ‘esse alguém’ que mantém reunidos, num único campo, todos os traços de que é constituída a escrita”

Assinala ainda Compagnon que, a partir de 1968, a morte do autor assinala a passagem do estruturalismo para o pós-estruturalismo. A libertação da autoria, coloca a noção de texto numa posição revolucionária, pois recusa o sentido único significa também recusar Deus e sua hipótese, a razão, a ciência e a lei. O leitor passa a dominar a cena da leitura aberta a uma gama de possibilidades de sentidos.
 Diz Maria Helena Dias (2000) que a noção de intertextualidade, surgida na década de 60, se constitui em um modo de pensar sobre textos e de ler textos, nascido da proposta desconstrucionista abraçada pelos teóricos e críticos pós-estruturalistas. Para tais autores, escritores ao criar textos ou usar palavras o fazem com base em todos os outros textos e palavras com que deparam e os leitores lidam com os textos da mesma forma. A vida cultural é, pois, entendida como uma série de textos em intersecção com outros textos que possam tê-lo afetado ou que afetam o próprio crítico ao lê-lo.
A noção de intertextualidade é aplicável não só ao texto literário, mas a todo e qualquer texto, verbal ou não, a noção tradicional de autoria é, portanto, abolida. Subvertendo a idéia do texto como totalidade hermética e auto-suficiente, coloca em seu lugar o fato de que toda obra literária ocorre efetivamente na presença de outros textos à semelhança dos palimpsestos. Torna, também, menos claros os contornos do livro dispersando sua imagem de totalidade em um tecido ilimitado de conexões, associações, fragmentos, textos e contextos.
 Palimpsesto [do grego. palímpsestos, 'raspado novamente', pelo lat. palimpsestu.]. S.m. 1. Antigo material de escrita, principalmente o pergaminho, usado, em razão de sua escassez ou alto preço, duas ou três vezes, mediante raspagem do texto anterior. 2. Manuscrito sob cujo texto se descobre (em alguns casos a olho desarmado, mas na maioria das vezes recorrendo a técnicas especiais, a princípio por processo químico, que arruinava o material, e depois por meio da fotografia, com o emprego de raios infravermelhos, raios ultravioletas ou luz fluorescente) a escrita ou escritas anteriores: "Inutilizei um caderno de papel almaço, e o primeiro rascunho, à força de rasuras, emendas, chamadas, interversões, acabou por ser para mim próprio o mais impenetrável palimpsesto." (Aquilino Ribeiro, Lápides partidas, p.120). Dicionário Eletrônico Aurélio, Nova Fronteira. (apud. Maria Helena Dias; Hipertexto – o labirinto Eletrônico. Uma experiência Hipertextual. Tese de doutorado, Unicamp, 2000).



Veja nos quadros abaixo, exemplos de Palimpsesto:

A imagem acima é de um palimpsesto em que estava originalmente registrado um antigo manuscrito correspondente à obra do matemático Arquimedes, produzido em Constantinopla no século X (na imagem abaixo o texto original é ressaltado com técnicas digitais) e posteriormente sobreposto no sentido transversal, no século XII, por um texto religioso produzido por um monge inglês.
O conceito de intertextualidade se liga à questão da heterogeneidade da obra artística. Segundo George Yudice (1990:53), essa manifestação do heterogêneo estávinculada ao pensamento de Heidegger, que relaciona a manifestação do heterogêneo  à manifestação da linguagem. Em certo sentido, diz Yuidice, a linguagem seria a morada do ser, e o ser a manifestação de uma heterogeneidade irredutível. Frisa que é importanteapreender esse conceito pela seguintes razão: “para vários teóricos  - como Julia Kristeva ou os teóricos da desconstrução – a arte moderna está totalmente preocupada com a questão da heterogeneidade.”

Diz Yudice (1990: 54) que para Mikhail Bakthin, a linguagem não pertence a ninguém. As pessoas só podem apropriar-se da própria maneira de falar e, mesmo assim, sua maneira de ser varia de acordo com quem está falando. Ele encontrou uma maneira muito flexível para definir como a diversidade de outras falas afeta a nossa própria fala, traçando um modelo para definir certo tipo de obra estética. Para ele, o romance seria um modelo do que chama ‘diversidade verbal do mundo’ ou ‘heteroglossia’. Para Bakhtin, que não separa totalmente fala de ação, o indivíduo está agindo enquanto fala.

Kristeva converteu esse conceito de ‘heteroglossia’, de Bakhtin, em intertextualidade. Ela textualizou-o de modo a aplicá-lo à obra de arte ou mais especificamente a obra literária. Mas convém frisar que Bakhtin fazia questão de não separar a obra de arte da vida cotidiana. Ele usou sua teorias para estudar a obra do autor realista Dostoievski, criando o conceito de polifonia.

Júlia Kristeva foi a primeira a empregar a expressão intertextualidade cuja raiz latina, o termo "intertexto", se refere, no ato de tecer, ao entrelaçamento dos fios. Para Kristeva (1974) qualquer texto é construído em termos de um mosaico de citações, qualquer texto é a absorção e a transformação de outro.  Diz que o texto "é uma permutação de textos, uma intertextualidade: no espaço de um texto, vários enunciados, vindos de outros textos, cruzam-se e neutralizam-se". Mencionou a palavra intertextualidade, pela primeira vez, em um ensaio publicado nos finais da década de 1960. Ela provocou um abalo na idéia cristalizada e estabelecida sobre o autor como única fonte do texto, afirmando que tanto uma mesa posta para um jantar como um poema, enquanto sistemas de significantes são constituídos de sistemas significantes anteriores.  Ela alterou a ótica do trabalho de "escritura" como produto de um único autor, concebe a escritura como fonte nascida do entrecruzamento com outros textos e estruturas da própria linguagem.
Barthes( 1988) também teorizou sobre a intertextualidade: "Qualquer texto é um novo tecido de citações passadas. Pedaços de código, modelos rítmicos, fragmentos de linguagens sociais, etc, passam através do texto e são redistribuídos dentro dele visto que sempre existe linguagem antes e em torno do texto."

À luz do conceito de intertextualidade o ato de escrever é sempre uma interação que também é uma retomada e troca de um texto com o outro. Essa reescrita que traz ou desloca para o primeiroplano textos ou traços de vários textos, de forma consciente ou não, desloca a validade da intenção do autor e coloca em primeiro plano o leitor. Este não é mais entendido como um mero receptor passivo, mas um segundo produtor da significação, aberto às possibilidades de leitura que a fabulação da linguagem da obra e seu próprio imaginário permitir. Podemos falar então de singularidadedo autor, jamais da sua originalidade. Essa última noção perdeu o seu valor crítico.


BAKHTIN, M.M (1997). Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
BARTHES, R (1980). Aula. São Paulo: Editora Cultrix.
___________ (1988). O Prazer do Texto. Lisboa - Portugal, Edições 70.
___________(1988). “A morte do autor”. In: O Rumor da Língua. São Paulo: Brasiliense.
COMPAGNOM, Antoine. O demônio da teoria. Literatura e senso comum. Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão & Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte, UFMG, 2003.
FOUCAULT, Michel (1992) O que é um autor?. Vega: Passagens. Tradução de Antonio F. Cascais e Edmundo Cordeiro
_________________ (1990). As Palavras e as Coisas. São Paulo, Martins Fontes.
KRISTEVA, Julia (1974). Introdução à Semanálise. São Paulo, Perspectiva.
PEREIRA DIAS, Maria Helena (2000). Hipertexto – O Labirinto Eletrônico. Uma Experiência Hipertextual. Tese de doutorado, Faculdade de Educação, São Paulo: UNICAMP.
YUDICE, George (1990). O Pós-Moderno em Debate. Entrevista concedida a Eneida Maria de Souza, Wander Melo Miranda. (faculdade de letras da Universidade Federal de Minas Gerais) e Roberto Barros de Carvalho. In: Ciência Hoje. Vol. 11, nº 62. março, 1990.