Caravaggio
A Inspiração de São Mateus
Roland Barthes na década de 60
sente-se oprimido pelo discurso institucionalizado. Mas a partir de 1968, o ano
da rebeldia francesa, que acabou disseminando-se por outros países da Europa,
conclama adeptos para uma atitude subversiva diante da linguagem. No livro
Aula, Roland Barthes (1988: 21,22) diz-nos que:
“a escrita faz do saberuma festa, ela acontece sempre que as palavras
tenham sabor. Saber e sabor têm a mesma etimologia em latim – significa ter
gosto; exalar um cheiro, um odor, fig: conhecer, compreender.”
Barthes quer dar início a uma forma diferente de leitura do
texto, fazer algo que torne possível girar os saberes, libertar os leitores de
estereótipos que a tradição consagrou. Sua voz não é imperativa, mas a voz que
usa a retórica do convencimento, da conquista. Roland Barthes quis dramatizar a
linguagem para exibir o teatro da escritura, ironizar as opressões ideológicas
e refletir sobre o impacto da arte sobre a vida.
Darei ênfase, sobretudo, ao livro
O Prazer do Texto, pois foi nesse livro que Barthes estabeleceu a distinção
entre texto de prazer e texto de fruição, dos quais iremos tratar aqui. A
princípio, ressaltamos que a escrita barthesiana, nessa obra, assume um certo
descontínuo, uma natureza fragmentária, sem deixar de constituir um discurso
fundamentalmente teórico. Diz o crítico literário Eduardo Prado Coelho (1988:
10-11) que traduziu e prefaciou o livro:
“A leitura de ‘O Prazer do Texto’ pode
provocar, pelo menos, dois tipos de reacções negativas: por um lado, será
possível que alguns suponham que se tratam de pequenos ‘devaneios’ literários,
em que o autor, a partir de alguns motivos da teoria estética, tece algumas
considerações mais ou menos líricas em que certo número de ‘ ideias’ relativamente
conhecidas surgem sob roupagem nova; por outro lado, outros poderiam ceder à
fascinação que a qualidade muito evidente deste texto não deixa de exercer, e
deixarem-se ficar por aí, seduzidos, sim, mas incapazes de vislumbrarem o
alcance teórico da obra. A isso convirá opor uma afirmação frontal e neste
momento fortemente dogmática: o prazer do texto é muito provavelmente uma das
obras contemporâneas mais importantes no campo da teoria da literatura. Isto,
claro, para um leitor atento, que saiba
deixar repercutirem-se em si as múltiplas indicações que o texto tem o cuidado
de suspender no instante preciso em que elas se poderiam começar a
conceptualizar.” (grifo meu).
Eduardo Prado Coelho ressalta, ainda, que O Prazer do Texto
é importante por dois efeitos simultâneos, é interessante não só como obra que
teoriza sobre a literatura, mas como obra de cunho político e moral, criando
espaços de reflexão inteiramente novos. Segundo Barthes (1988:98):
“O texto é (deveria ser) essa
pessoa desenvolta que mostra o traseiro ao pai político.”
Em O Prazer do Texto, podemos extrair muitas considerações e
formulações a respeito do conceito de texto, o que provoca um certo incômodo
naqueles que procuram formulações cristalizadas, próprias dos campos de saber
tradicionalmente institucionalizados. Ressalta Barthes (1988:112) sobre o texto
literário:
“Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até
aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu acabado, por
detrás do qual se conserva, mais ou menos escondido, o sentido (a verdade), nós
acentuamos agora, no tecido, a idea generativa de que o texto se faz, se
trabalha, através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa
textura – o sujeito desfaz-se, como um aranha que se dissolve-se a si própria nas
secreções construtivas da sua teia. Se gostássemos de neologismos, poderíamos
definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia de
aranha).”
Diz ainda citando Nietszche:
“Não somos suficientemente subtis para nos apercebermos do escoamento
provavelmente absoluto do devir; o permanente só existe graças aos nossos
órgãos grosseiros que resumem e reduzem as coisas a planos comuns, quando nada
existe de sob essa forma. A árvore é a cada instante uma coisa nova; nós
afirmamos a forma porque não captamos a sutileza de um movimento absoluto.”
[...]
“Também o Texto seria essa árvore cuja nomeação (provisória) se deve a
imperfeição dos nossos órgãos. Nós seríamos científicos por falta de sutileza.”
O pensamento de Barthes sobre o texto é uma tentativa de
desmascarar o que se veste de evidência, norma, senso comum. Para Barthes é
texto tudo que através do discurso se liberta das condições tradicionais de
comunicação e significação. Roland Barthes (1988: 116) ao tratar do texto
diz-nos ainda que:
“o grão da voz é um
misto erótico de timbre e de linguagem, e portanto, tal como a dicção, também
pode ser a matéria de uma arte: a arte de conduzir o próprio corpo (daí a sua
importância nos teatros extremo orientais). Em atenção aos sons da língua, a
escrita em voz alta não é fonológica, mas fonética; o seu objetivo não é a
clareza das mensagens, o teatro das emoções: o que ela procura (numa
perspectiva de fruição) são os incidentes pulsionais, a linguagem revestida de
pele, um texto onde se possa ouvir o grão da garganta, a pátina das consoantes,
a voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne profunda: a
articulação do corpo, da língua, e não a do sentido, da linguagem.”(grifo meu)
O texto, como nos demonstra as citações anteriores, seria
uma prática significante que rompe com as condições convencionais de
comunicação e significação. Desse modo funda-se em um espaço específico
alterando a ordem da língua, subvertendo a linguagem padrão e produzindo uma
significância. Mas o que é a significância para Barthes (1988:109)
“O que é a significância? É o sentido na medida em que é produzido
sensualmente.”
A significância em Barthes é, para Eduardo
Prado Coelho (1988:23), num primeiro momento, a recusa de uma significação
única; é o que faz do texto, não um produto, mas uma produção; é o que mantém o
texto num estatuto de enunciação, e rejeita que ele se converta num enunciado;
é o que impede o texto de se transformar em estrutura, e exige que ele seja
entendido como estruturação. Para Barthes o texto deve ser entendido também
como escritura. Esta questiona sem oferecer respostas, desliza a significação
sem cristalizá-la, produzindo aqui e ali o próprio sujeito e sua voz, não
exprimindo, mas fazendo o próprio conteúdo. Daí a responsabilidade da forma
escritural: abrir uma fenda para que se ouça a voz do texto que ora é por ele
designado como texto de prazer e texto de fruição:
“Texto de prazer: aquele que contenta,
enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a
uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que coloca em
situação de perda, aquele que desconforta (talvez até chegar a um certo
aborrecimento), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do
leitor, a consistência dos seus gostos, dos seus valores e das suas
recordações, faz entrar em crise com a linguagem.” (Barthes 1988: 49)
Diz mais:
“Prazer do texto. Clássicos. Cultura (quanto
mais cultura houver, maior, mais diverso será o prazer). Inteligência. Ironia. Delicadeza.
Euforia. Domínio. Segurança: arte de viver. O prazerdo texto pode ser definido
por uma prática (sem o menor risco de repressão): lugar e tempo de leitura:
casa, província, refeição imediata, candeeiro, família, onde é precisa, isto é,
ao longe e não longe (Poust no gabinete com aroma de Íris), etc. Extraordinário
reforçamento do ego (pelo fantasma); inconsciente alcochoado. O prazer pode ser
dito: é daí que vem a crítica.Texto de fruição. O prazer aos bocados, a língua
aos bocados, a cultura aos bocados. São perversos porque estão fora de qualquer
finalidade imaginável – mesmo a do prazer (a fruição não implica o prazer; pode
até aborrecer aperentemente). Não há
nenhum álibi que resista, nada se reconstitui, nada se recupera. O texto de
fruição é absolutamente intransitivo. No entanto, a perversão não basta para
definir a fruição; é o extremo da perversão que a define: extremo sempre
deslocado, extremo vazio, móvel ,imprevisível. Este extremo assegura a fruição.
Uma perversão média depressa se enche com um jogo de finalidades subalternas:
prestígio, jogo, cartaz, rivalidade, para, etc.”(Barthes 1988: 96-97)
Roland Barthes nos apresenta os
conceitos de plaisir (prazer) e jouissance (fruição), diferentes tipos de
recepções que podemos apreender dos textos literários. O prazer , a princípio,
estaria mais ligado aos textos clássicos, e a jouissance, de controvertida
tradução como “fruição” ou “gozo”, seria mais facilmente encontrável nos textos
modernos. Ambos se relacionam ao conceito de “escritura” em Barthes, onde é
proposto um deslizamento da forma, uma trapaça, uma quebra das estruturas de
poder da ideologia dominante imposta também através do discurso e da linguagem.
Ressaltamos que há uma diferença
sutil entre o prazer do texto e texto de prazer. Nas teorizações de Barthes
sobre a significância, ele associa o prazer do texto ao percurso erótico que a
significância produz:“O prazer do texto é o momento em
que meu corpo vai seguir as suas próprias idéias – porque o meu corpo não tem a
mesma idéia que eu.”
Trazer o corpo para a leitura do
texto é escolher o que vai ser colocado na cena literária e dramatizar, na
leitura, o espetáculo de um contraste obscurecido entre a realidade e a arte,
mostrando que a razão mesma é vulnerável à dúvida e tudo o que resta é a ironia
do discurso.
Diz Eduardo Prado Coelho que
escrever para Barthes é uma atividade onde o escritor escreve apenas para saber
o que quer dizer, para dialogar com as idéias do seu próprio corpo, para perder
a sua consciência no ilimitado da significância. Assinala que é nessa perda de
consciência que o texto adquire o seu valor erótico: o texto se aproxima do
orgasmo.
Para Barthes a noção de texto não
abrange apenas as obras literárias, mas todas as modalidades de significação,
como já foi proposto em suas obras sobre semiologia. No dizer de Barthes,
qualquer prática significante produz o texto. O que nos permite analisar as
obras do cinema, da pintura, da música, como sendo também textos.
BARTHES, Roland (1988). O Prazer do Texto. Lisboa - Portugal,
Edições 70.