segunda-feira, março 18, 2013

O Prazer do Texto


Caravaggio  
A Inspiração de São Mateus





















Roland Barthes na década de 60 sente-se oprimido pelo discurso institucionalizado. Mas a partir de 1968, o ano da rebeldia francesa, que acabou disseminando-se por outros países da Europa, conclama adeptos para uma atitude subversiva diante da linguagem. No livro Aula, Roland Barthes (1988: 21,22) diz-nos que:

“a escrita faz do saberuma festa, ela acontece sempre que as palavras tenham sabor. Saber e sabor têm a mesma etimologia em latim – significa ter gosto; exalar um cheiro, um odor, fig: conhecer, compreender.”

Barthes quer dar início a uma forma diferente de leitura do texto, fazer algo que torne possível girar os saberes, libertar os leitores de estereótipos que a tradição consagrou. Sua voz não é imperativa, mas a voz que usa a retórica do convencimento, da conquista. Roland Barthes quis dramatizar a linguagem para exibir o teatro da escritura, ironizar as opressões ideológicas e refletir sobre o impacto da arte sobre a vida.
Darei ênfase, sobretudo, ao livro O Prazer do Texto, pois foi nesse livro que Barthes estabeleceu a distinção entre texto de prazer e texto de fruição, dos quais iremos tratar aqui. A princípio, ressaltamos que a escrita barthesiana, nessa obra, assume um certo descontínuo, uma natureza fragmentária, sem deixar de constituir um discurso fundamentalmente teórico. Diz o crítico literário Eduardo Prado Coelho (1988: 10-11) que traduziu e prefaciou o livro:

“A leitura de ‘O Prazer do Texto’ pode provocar, pelo menos, dois tipos de reacções negativas: por um lado, será possível que alguns suponham que se tratam de pequenos ‘devaneios’ literários, em que o autor, a partir de alguns motivos da teoria estética, tece algumas considerações mais ou menos líricas em que certo número de ‘ ideias’ relativamente conhecidas surgem sob roupagem nova; por outro lado, outros poderiam ceder à fascinação que a qualidade muito evidente deste texto não deixa de exercer, e deixarem-se ficar por aí, seduzidos, sim, mas incapazes de vislumbrarem o alcance teórico da obra. A isso convirá opor uma afirmação frontal e neste momento fortemente dogmática: o prazer do texto é muito provavelmente uma das obras contemporâneas mais importantes no campo da teoria da literatura. Isto, claro,  para um leitor atento, que saiba deixar repercutirem-se em si as múltiplas indicações que o texto tem o cuidado de suspender no instante preciso em que elas se poderiam começar a conceptualizar.” (grifo meu).

Eduardo Prado Coelho ressalta, ainda, que O Prazer do Texto é importante por dois efeitos simultâneos, é interessante não só como obra que teoriza sobre a literatura, mas como obra de cunho político e moral, criando espaços de reflexão inteiramente novos. Segundo Barthes (1988:98):

“O texto é (deveria ser) essa pessoa desenvolta que mostra o traseiro ao pai político.”

Em O Prazer do Texto, podemos extrair muitas considerações e formulações a respeito do conceito de texto, o que provoca um certo incômodo naqueles que procuram formulações cristalizadas, próprias dos campos de saber tradicionalmente institucionalizados. Ressalta Barthes (1988:112) sobre o texto literário:

“Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu acabado, por detrás do qual se conserva, mais ou menos escondido, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idea generativa de que o texto se faz, se trabalha, através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito desfaz-se, como um aranha que se dissolve-se a si própria nas secreções construtivas da sua teia. Se gostássemos de neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia de aranha).”

Diz ainda citando Nietszche:

“Não somos suficientemente subtis para nos apercebermos do escoamento provavelmente absoluto do devir; o permanente só existe graças aos nossos órgãos grosseiros que resumem e reduzem as coisas a planos comuns, quando nada existe de sob essa forma. A árvore é a cada instante uma coisa nova; nós afirmamos a forma porque não captamos a sutileza de um movimento absoluto.”
[...]
“Também o Texto seria essa árvore cuja nomeação (provisória) se deve a imperfeição dos nossos órgãos. Nós seríamos científicos por falta de sutileza.”

O pensamento de Barthes sobre o texto é uma tentativa de desmascarar o que se veste de evidência, norma, senso comum. Para Barthes é texto tudo que através do discurso se liberta das condições tradicionais de comunicação e significação. Roland Barthes (1988: 116) ao tratar do texto diz-nos ainda que:

 “o grão da voz é um misto erótico de timbre e de linguagem, e portanto, tal como a dicção, também pode ser a matéria de uma arte: a arte de conduzir o próprio corpo (daí a sua importância nos teatros extremo orientais). Em atenção aos sons da língua, a escrita em voz alta não é fonológica, mas fonética; o seu objetivo não é a clareza das mensagens, o teatro das emoções: o que ela procura (numa perspectiva de fruição) são os incidentes pulsionais, a linguagem revestida de pele, um texto onde se possa ouvir o grão da garganta, a pátina das consoantes, a voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne profunda: a articulação do corpo, da língua, e não a do sentido, da linguagem.”(grifo meu)

O texto, como nos demonstra as citações anteriores, seria uma prática significante que rompe com as condições convencionais de comunicação e significação. Desse modo funda-se em um espaço específico alterando a ordem da língua, subvertendo a linguagem padrão e produzindo uma significância. Mas o que é a significância para Barthes (1988:109)

“O que é a significância? É o sentido na medida em que é produzido sensualmente.”

 A significância em Barthes é, para Eduardo Prado Coelho (1988:23), num primeiro momento, a recusa de uma significação única; é o que faz do texto, não um produto, mas uma produção; é o que mantém o texto num estatuto de enunciação, e rejeita que ele se converta num enunciado; é o que impede o texto de se transformar em estrutura, e exige que ele seja entendido como estruturação. Para Barthes o texto deve ser entendido também como escritura. Esta questiona sem oferecer respostas, desliza a significação sem cristalizá-la, produzindo aqui e ali o próprio sujeito e sua voz, não exprimindo, mas fazendo o próprio conteúdo. Daí a responsabilidade da forma escritural: abrir uma fenda para que se ouça a voz do texto que ora é por ele designado como texto de prazer e texto de fruição:

“Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que coloca em situação de perda, aquele que desconforta (talvez até chegar a um certo aborrecimento), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência dos seus gostos, dos seus valores e das suas recordações, faz entrar em crise com a linguagem.” (Barthes 1988: 49)

Diz mais:

“Prazer do texto. Clássicos. Cultura (quanto mais cultura houver, maior, mais diverso será o prazer). Inteligência. Ironia. Delicadeza. Euforia. Domínio. Segurança: arte de viver. O prazerdo texto pode ser definido por uma prática (sem o menor risco de repressão): lugar e tempo de leitura: casa, província, refeição imediata, candeeiro, família, onde é precisa, isto é, ao longe e não longe (Poust no gabinete com aroma de Íris), etc. Extraordinário reforçamento do ego (pelo fantasma); inconsciente alcochoado. O prazer pode ser dito: é daí que vem a crítica.Texto de fruição. O prazer aos bocados, a língua aos bocados, a cultura aos bocados. São perversos porque estão fora de qualquer finalidade imaginável – mesmo a do prazer (a fruição não implica o prazer; pode até aborrecer  aperentemente). Não há nenhum álibi que resista, nada se reconstitui, nada se recupera. O texto de fruição é absolutamente intransitivo. No entanto, a perversão não basta para definir a fruição; é o extremo da perversão que a define: extremo sempre deslocado, extremo vazio, móvel ,imprevisível. Este extremo assegura a fruição. Uma perversão média depressa se enche com um jogo de finalidades subalternas: prestígio, jogo, cartaz, rivalidade, para, etc.”(Barthes 1988: 96-97)

Roland Barthes nos apresenta os conceitos de plaisir (prazer) e jouissance (fruição), diferentes tipos de recepções que podemos apreender dos textos literários. O prazer , a princípio, estaria mais ligado aos textos clássicos, e a jouissance, de controvertida tradução como “fruição” ou “gozo”, seria mais facilmente encontrável nos textos modernos. Ambos se relacionam ao conceito de “escritura” em Barthes, onde é proposto um deslizamento da forma, uma trapaça, uma quebra das estruturas de poder da ideologia dominante imposta também através do discurso e da linguagem.
Ressaltamos que há uma diferença sutil entre o prazer do texto e texto de prazer. Nas teorizações de Barthes sobre a significância, ele associa o prazer do texto ao percurso erótico que a significância produz:“O prazer do texto é o momento em que meu corpo vai seguir as suas próprias idéias – porque o meu corpo não tem a mesma idéia que eu.”
Trazer o corpo para a leitura do texto é escolher o que vai ser colocado na cena literária e dramatizar, na leitura, o espetáculo de um contraste obscurecido entre a realidade e a arte, mostrando que a razão mesma é vulnerável à dúvida e tudo o que resta é a ironia do discurso.
Diz Eduardo Prado Coelho que escrever para Barthes é uma atividade onde o escritor escreve apenas para saber o que quer dizer, para dialogar com as idéias do seu próprio corpo, para perder a sua consciência no ilimitado da significância. Assinala que é nessa perda de consciência que o texto adquire o seu valor erótico: o texto se aproxima do orgasmo.
Para Barthes a noção de texto não abrange apenas as obras literárias, mas todas as modalidades de significação, como já foi proposto em suas obras sobre semiologia. No dizer de Barthes, qualquer prática significante produz o texto. O que nos permite analisar as obras do cinema, da pintura, da música, como sendo também textos.

BARTHES, Roland (1988). O Prazer do Texto. Lisboa - Portugal, Edições 70.