“A arte é, antes de tudo,
criadora de símbolos” (Chklovski)
Salvador Dalí - The persistence of memory (1931).
Freud estudou outras formas de
arte (pintura, escultura), mas era o escritor: o romancista ou poeta que ele
considerava quando se referia à natureza da criação artística. O primeiro
estudo de Freud completamente dedicado a uma obra literária foi Delírios e
Sonhos na “Gradiva” de Jensen. Dizem os estudiosos que foi Jung quem primeiro
apresentou a Freud o romance de Wilhelm Jensen, autor alemão, no verão de 1906.
O estudo analítico de Freud, realizado em 1907, foi enviado a Jensen que, dizem, ficou envaidecido e grato a Freud.
Segundo E. Portella Nunes e C. H.
Portella Nunes (1989), A novela de Jensen tinha tudo para fascinar Freud. Além
de passar-se em Pompéia, cidade soterrada cujas escavações Freud comparava ao
trabalho do psicanalista, arqueólogo da mente, a novela trata de sonhos e
distúrbios da percepção. Dizem que Freud aproveita a análise da Gradiva para
inserir um resumo de sua teoria dos sonhos e talvez o “primeiro esboço
semipopular de sua teoria das neuroses e da ação terapêutica da psicanálise”,
como nota Strachey.
O resumo da história de Gradiva é
fornecido por Freud como uma introdução à sua análise da obra de Jensen. O
romance conta a história de um jovem arqueólogo alemão, Norbert Hanhold, que
fica fascinado pela imagem de uma jovem mulher esculpida num baixo relevo do
Museu Arqueológico Nacional de Nápoles. Na noite seguinte, Hanhold tem um sonho
angustiante: encontrava-se em Pompéia, no ano 79, exatamente quando o Vesúvio
estava para entrar em erupção e destruir a cidade. No sonho, vê a Gradiva
diante dele mas antes que possa avisá-la do perigo iminente, a Gradiva é
sepultada pelas lavas do vulcão. Posteriormente, Norbert vai percebendo,
através de um longo e complexo processo, a ligação entre a Gradiva e um amor de
sua infância - Zoe Bertgang. Havia associado essa menina a uma mulher
idealizada que o fascina - a Gradiva do baixo relevo. Seus sentimentos se
deslocam, então, da mulher de mármore para a pessoa de Zoe.
A Gradiva de Jensen (do latim, "aquela que avança",
feminização de Gradivus, um dos epítetos do deus romano Marte, Mars Gradivus,
isto é, "Marte que avança") é um romance publicado em 1903 pelo
escritor alemão Wilhelm Jensen, que teve grande influência na cultura europeia,
sobretudo entre os surrealistas.
(Freud)
O ensaio Escritores Criativos e
Devaneios é a maior contribuição de
Freud para a compreensão da psicologia da criação artística. Esta é, aliás, a
opinião de Peter Gay, na breve introdução que lhe faz. Neste texto Sigmund
Freud se interessa pela natureza da criação imaginativa, associando o brincar
infantil à criação poética:
Se ao menos pudéssemos descobrir em nós mesmos ou em nossos
semelhantes uma atividade afim à criação literária! Uma investigação dessa
atividade nos daria a esperança de obter as primeiras explicações do trabalho
criador do escritor. E, na verdade, essa perspectiva é possível. Afinal, os
próprios escritores criativos gostam de diminuir a distância entre a sua classe
e o homem comum, assegurando-nos com muita freqüência de que todos, no íntimo,
somos poetas, e de que só com o último homem morrerá o último poeta. (FREUD, 2006, p.149)
Freud pergunta se não devemos
procurar na infância os primeiros traços da capacidade imaginativa. Para ele a
ocupação preferida das crianças são os brinquedos e os jogos, e afirma que
apesar de todo investimento em seu brinquedo, elas distinguem perfeitamente a
realidade factual do ludismo que lhe proporciona o brincar, e sentem o prazer
de unir sua imaginação ao mundo real que as circunda. Neste sentido, Freud
sugere que ao brincar toda criança se comporta como escritor criativo, pois
cria um mundo próprio. O autor afirma que a antítese do brincar não é o sério,
mas o que é real:
(...) Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança
se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor,
reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade? Seria
errado supor que a criança não leva esse mundo a sério; ao contrário, leva
muito a sério a sua brincadeira e dispende na mesma muita emoção. A antítese de
brincar não é o que é sério, mas o que é real. Apesar de toda a emoção com que
a criança contextualiza seu mundo de brinquedo, ela o distingue perfeitamente
da realidade, e gosta de ligar seus objetos e situações imaginados às coisas
visíveis e tangíveis do mundo real. Essa conexão é tudo o que diferencia o
‘brincar’ infantil do ‘fantasiar’. (Idem)
O fantasiar dos adultos não é
fácil de notar como as brincadeiras das crianças. Ao contrário, os adultos
escondem suas fantasias, guardando-as como seu bem mais íntimo. Freud aponta
que as forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda
fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória.
Ao opor a realidade e o brincar infantil, tendo por base desenvolvimento
humano, Freud diz que quando as pessoas crescem param de brincar, renunciando a
esse prazer da infância. Mas, na realidade, esse prazer não é verdadeiramente
renunciado. Ao parar de brincar, a criança em crescimento apenas abandona o elo
com os objetos reais e, em vez de brincar, passa a fantasiar. Constrói castelos no ar que chama
de devaneios:
Não posso
ignorar a relação entre as fantasias e os sonhos. Nossos sonhos noturnos nada
mais são do que fantasias dessa espécie, como podemos demonstrar pela
interpretação de sonhos. A linguagem, com sua inigualável sabedoria, há muito
lançou luz sobre a natureza básica dos sonhos, denominando de ‘devaneios’ as
etéreas criações da fantasia. Se, apesar desse indício, geralmente permanece
obscuro o significado de nossos sonhos, isto é por causa da circunstância de
que à noite também surgem em nós desejos de que nos envergonhamos; têm de ser
ocultos de nós mesmos, e foram conseqüentemente reprimidos, empurrados para o
inconsciente. Tais desejos reprimidos e seus derivados só podem ser expressos
de forma muito distorcida. Depois que trabalhos científicos conseguiram
elucidar o fator de distorção onírica, foi fácil constatar que os sonhos
noturnos são realização de desejos, da mesma forma que os devaneios - as
fantasias que todos conhecemos tão bem. (Idem,
p. 154)
No ensaio intitulado Freud e a
Literatura, E. Portella Nunes e C. H. Portella Nunes (1989) dizem que para
Freud, os elos mais importantes da relação criança/brinquedo e escritores
criativos estão no sonho e no devaneio, como se o texto literário fosse um
sonho do autor que por sua vez desencadeasse outros sonhos nos leitores. Tanto
o autor ao produzir seu texto quanto o leitor realizam, simbolicamente, desejos
reprimidos, tal como a criança faz através do seu jogo: manipula a realidade,
cria “uma outra cena” onde tudo pode acontecer. Onde passado, presente e futuro
misturam-se numa temporalidade sujeita apenas às rédeas do desejo. O que já foi
voltará a ser; o que teria sido é presente para sempre. Diz Freud:
Para que nossa comparação do escritor imaginativo com o homem
que devaneia e da criação poética com o devaneio tenha algum valor é
necessário, acima de tudo, que se revele frutuosa, de uma forma ou de outra.
Tentemos, por exemplo, aplicar à obra desses autores a nossa tese anterior
referente à relação entre a fantasia e os três períodos de tempo, e o desejo
que o entrelaça; e com seu auxílio estudemos as conexões existentes entre a
vida do escritor e suas obras. (...) À luz da compreensão interna (insight) de
tais fantasias, podemos encarar a situação como se segue. Uma poderosa
experiência no presente desperta no escritor criativo uma lembrança de uma
experiência anterior (geralmente de sua infância), da qual se origina então um
desejo que encontra realização na obra criativa. A própria obra revela
elementos da ocasião motivadora do presente e da lembrança antiga. (Idem,
p.156)
Freud ressalta que não se deve
esquecer que a ênfase dada às lembranças infantis da vida do escritor,
deriva-se basicamente da suposição de que a obra literária, tal qual o
devaneio, é uma forma de continuar ou substituir o que foi o brincar infantil.
Para que desfrutemos dos nossos devaneios sem temor da vergonha, diz Freud que
o escritor criativo nos seduz a liberarmos todo nosso
princípio de prazer recalcado através da identificação com as personagens das
obras, sobretudo, com o heróis e heroínas das obras literárias:
O sentimento de segurança com que acompanhamos o herói
através de suas perigosas aventuras é o mesmo com que o herói da vida real
atira-se à água para salvar um homem que se afoga, ou se expõe à artilharia
inimiga para investir contra uma bateria. Este é o genuíno sentimento heróico,
expresso por um dos nossos melhores escritores numa frase inimitável. ‘Nada me
pode acontecer’! Parece-me que através desse sinal revelador de
invulnerabilidade, podemos reconhecer de imediato Sua Majestade o Ego, o herói
de todo devaneio e de todas as histórias. (Idem, p.155)
Quem é o herói das novelas
populares que consegue sair são e salvo de todos os perigos e armadilhas dos
homens e dos deuses? Nada mais, nada menos do que “sua majestade, o Ego”, diz
Freud. É a identificação narcísica do leitor com o herói que faz com que
novelas e romances tenham sucesso. E esse Ego é o elemento que une o verbo do
escritor ao verbo dos homens:
(...) Mas quando um escritor criativo nos apresenta suas
peças, ou nos relata o que julgamos ser seus próprios devaneios, sentimos um
grande prazer, provavelmente originário da confluência de muitas fontes. Como o
escritor o consegue constitui seu segredo mais íntimo. A verdadeira ars poetica
está na técnica de superar esse nosso sentimento de repulsa, sem dúvida ligado
às barreiras que separam cada ego dos demais. Podemos perceber dois dos métodos
empregados por essa técnica. O escritor suaviza o caráter de seus devaneios
egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer
puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas
fantasias. Denominamos de prêmio de estímulo ou de prazer preliminar ao prazer
desse gênero, que nos é oferecido para possibilitar a liberação de um prazer
ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas. Em minha opinião,
todo prazer estético que o escritor criativo nos proporciona é da mesma
natureza desse prazer preliminar, e a verdadeira satisfação que usufruímos de
uma obra literária procede de uma libertação de tensões em nossas mentes.
Talvez até grande parte desse efeito seja devida à possibilidade que o escritor
nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios,
sem auto-acusações ou vergonha. Isso nos leva ao limiar de novas e complexas
investigações, mas também, pelo menos no momento, ao fim deste exame. (Idem,
pp.157-158)
A realização de todos os nossos
desejos e fantasias é possível graças ao fenômeno da “sedução estética” através
do devaneio artístico, ou seja, da obra literária. Para Freud, a literatura
assume a mesma importância que o “prazer preliminar” (Vorlust) ocupa na relação
sexual: rompe os limites da repressão permitindo a liberação de um prazer mais
intenso e profundo (Endlust). O erotismo censurado e o narcisismo integram as
formas possíveis do devaneio, daí seu caráter secreto e de vergonha. Sempre nos
sentimos invadidos e censurados quando alguém parece querer desvendar nossa
imaginação e nossos devaneios. Desse modo, toda arte é uma forma rebelde de
libertação.
Freud – Sigmund Freud (Viena,1856 – Londres, 1939),
médico austríaco e fundador da psicanálise. Nascido em Freiberg, na Moravia (ou
Pribor, na República Tcheca), em 6 de maio de 1856. Sigmund Freud era filho de
Amália Freud e de Jacob Freud, e filho mais velho do terceiro casamento de seu
pai.
REFERÊNCIAS
BELLEMIN-NOEL, Jean. Psicanálise e literatura. Trad. Álvaro
Lorencini e Sandra Nitrini. S. Paulo: Cultrix, 1978.
BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. São Paulo, Paz e Terra, 2007.
FREUD, Sigmund. “Escritores Criativos e Devaneios”. In:
‘Gradiva de Jensen’ e Outros Trabalhos”.
Rio de Janeiro: Imago, 1996.
NUNES, E. Portella e NUNES C.H.Portella (1989). Freud e a Literatura. In:
http://www.bernardojablonski.com/pdfs/graduacao/freud_literatura.pdf
RYCROFT, Charles. Dicionário Crítico de Psicanálise. Rio de
Janeiro, Imago, 1975.