Carta de Henri Matisse a Henry
Clifford – diretor do Museu De Arte da Filadélfia –, escrita em 1948, antes de
uma grande exposição do pintor francês que ia ocorrer naquele museu:
"Espero que minha exposição seja
digna de todo o trabalho que está lhe dando e que me comove profundamente.
Tendo em vista, porém, a grande
repercussão que pode ter, e vendo quantos preparativos estão sendo feitos para
ela, pergunto-me se o seu âmbito não terá uma influência mais ou menos infeliz
sobre os jovens pintores. Como interpretarão eles a impressão de aparente
facilidade que lhes produzirá uma visão geral rápida, e até mesmo superficial,
de minhas pinturas e desenhos?
Sempre tentei ocultar os meus
esforços, sempre desejei que minhas obras tivessem a leveza e a alegria da
primavera, que nunca nos permite suspeitar o trabalho que custou. Por isso,
receio que os jovens, vendo em minha obra apenas uma facilidade aparente e
negligência no desenho, se sirvam disso como desculpa para evitar certos
esforços que me parecem necessários.
As poucas exposições que tive a
oportunidade de ver durante estes últimos anos levam-me a temer que os jovens
pintores estejam evitando a lenta e penosa preparação necessária à educação de
qualquer pintor contemporâneo que pretenda construir apenas pela cor.
Esse trabalho lento e penoso é
indispensável. Na verdade, se os jardins não fossem cavados no momento
adequado, em breve não serviriam para nada. Não precisamos limpar o terreno
para em seguida cultivá-lo a cada estação do ano?
Se o artista não soube preparar o
seu período de floração, mediante um trabalho que apresenta pouca semelhança
com o resultado final, breve é o futuro que tem à sua frente: quando um artista
que 'venceu', já não sente a necessidade de voltar à terra de tempos em tempos,
começa a andar à volta, repetindo-se, até que sua curiosidade se extingue nessa
repetição.
O artista precisa possuir a
natureza. Deve identificar-se com o seu ritmo, por meio de esforços que
preparem o domínio que mais tarde lhe permitirá expressar-se na sua própria
linguagem.
O futuro pintor deve saber o que
é útil para o seu desenvolvimento – desenho, ou mesmo escultura – tudo o que o
levará a identificar-se com a natureza, entrando nas coisas – é a isso a que
chamo natureza – que lhe provocam sentimentos. Considero essencial o estudo por
meio do desenho. Se o desenho pertence ao Espírito e a cor aos Sentidos, é
preciso desenhar primeiro, cultivar o espírito e ser capaz de conduzir a cor
pelos caminhos espirituais. É isso o que quero dizer bem alto, quando vejo o
trabalho de jovens para quem a pintura já não é uma aventura e cujo único
objetivo é a exposição individual que os ponha no caminho da fama.
Só depois de anos de preparo
deve o artista jovem tocar na cor – isto é, não como uma descrição, mas sim
como meio de expressão. Só então pode ele esperar que todas as imagens, ou
mesmo todos os símbolos que usar sejam reflexo de seu amor pelas coisas, um
reflexo em que ele pode confiar, caso tenha realizado sua educação com pureza e
sem mentir para si mesmo.
Então ele empregará a cor com
discernimento. Irá colocá-la de acordo com um projeto natural, não formulado e
totalmente disfarçado, que nascerá diretamente de seus sentimentos: foi isso
que permitiu a Tolouse-Lautrec, no fim de sua vida, exclamar: 'Finalmente, já
não sei mais desenhar.
O pintor que está apenas
começando acha que pinta com o coração. O artista que completou seu
desenvolvimento também acha que pinta com o coração. Só este último está certo,
porque seu treinamento e disciplina lhe permitem ceder a impulsos que ele pode,
pelo menos em parte, disfarçar.
Não tenho a pretensão de
ensinar: quero apenas que minha exposição não provoque interpretações falsas
naqueles que ainda precisam abrir o seu caminho. Gostaria que as pessoas
soubessem que não podem abordar a cor como se entrassem por uma porta aberta,
que é necessário passar por um rigoroso preparo para ser digno dela. Mas, antes
de tudo, é evidente que devemos ter um dom da cor, como o cantor deve ter voz.
Sem esse dom, não podemos chegar a lugar nenhum, e nem todos podem dizer como
Corregio: 'Anch’io son pittore.' O colorista faz sentir sua presença até mesmo
num simples desenho a carvão.”
Meu caro Sr. Clifford, chego ao
fim de minha carta. Comecei-a para dizer-lhe que compreendo o trabalho que está
tendo comigo no momento. E vejo que, obedecendo a uma necessidade íntima, fiz
desta carta uma expressão do que sinto sobre o desenho, a cor e a importância
da disciplina na educação de um artista. Se acha que todas essas minhas
reflexões podem ser úteis a alguém, faça com esta carta o que lhe parecer
melhor."