quinta-feira, janeiro 16, 2014

Carta Henri Matisse a Henry Clifford


 
 
Carta de Henri Matisse a Henry Clifford – diretor do Museu De Arte da Filadélfia –, escrita em 1948, antes de uma grande exposição do pintor francês que ia ocorrer naquele museu:
"Espero que minha exposição seja digna de todo o trabalho que está lhe dando e que me comove profundamente.
Tendo em vista, porém, a grande repercussão que pode ter, e vendo quantos preparativos estão sendo feitos para ela, pergunto-me se o seu âmbito não terá uma influência mais ou menos infeliz sobre os jovens pintores. Como interpretarão eles a impressão de aparente facilidade que lhes produzirá uma visão geral rápida, e até mesmo superficial, de minhas pinturas e desenhos?
Sempre tentei ocultar os meus esforços, sempre desejei que minhas obras tivessem a leveza e a alegria da primavera, que nunca nos permite suspeitar o trabalho que custou. Por isso, receio que os jovens, vendo em minha obra apenas uma facilidade aparente e negligência no desenho, se sirvam disso como desculpa para evitar certos esforços que me parecem necessários.
As poucas exposições que tive a oportunidade de ver durante estes últimos anos levam-me a temer que os jovens pintores estejam evitando a lenta e penosa preparação necessária à educação de qualquer pintor contemporâneo que pretenda construir apenas pela cor.
Esse trabalho lento e penoso é indispensável. Na verdade, se os jardins não fossem cavados no momento adequado, em breve não serviriam para nada. Não precisamos limpar o terreno para em seguida cultivá-lo a cada estação do ano?
Se o artista não soube preparar o seu período de floração, mediante um trabalho que apresenta pouca semelhança com o resultado final, breve é o futuro que tem à sua frente: quando um artista que 'venceu', já não sente a necessidade de voltar à terra de tempos em tempos, começa a andar à volta, repetindo-se, até que sua curiosidade se extingue nessa repetição.
O artista precisa possuir a natureza. Deve identificar-se com o seu ritmo, por meio de esforços que preparem o domínio que mais tarde lhe permitirá expressar-se na sua própria linguagem.
O futuro pintor deve saber o que é útil para o seu desenvolvimento – desenho, ou mesmo escultura – tudo o que o levará a identificar-se com a natureza, entrando nas coisas – é a isso a que chamo natureza – que lhe provocam sentimentos. Considero essencial o estudo por meio do desenho. Se o desenho pertence ao Espírito e a cor aos Sentidos, é preciso desenhar primeiro, cultivar o espírito e ser capaz de conduzir a cor pelos caminhos espirituais. É isso o que quero dizer bem alto, quando vejo o trabalho de jovens para quem a pintura já não é uma aventura e cujo único objetivo é a exposição individual que os ponha no caminho da fama. 
Só depois de anos de preparo deve o artista jovem tocar na cor – isto é, não como uma descrição, mas sim como meio de expressão. Só então pode ele esperar que todas as imagens, ou mesmo todos os símbolos que usar sejam reflexo de seu amor pelas coisas, um reflexo em que ele pode confiar, caso tenha realizado sua educação com pureza e sem mentir para si mesmo.
Então ele empregará a cor com discernimento. Irá colocá-la de acordo com um projeto natural, não formulado e totalmente disfarçado, que nascerá diretamente de seus sentimentos: foi isso que permitiu a Tolouse-Lautrec, no fim de sua vida, exclamar: 'Finalmente, já não sei mais desenhar.
O pintor que está apenas começando acha que pinta com o coração. O artista que completou seu desenvolvimento também acha que pinta com o coração. Só este último está certo, porque seu treinamento e disciplina lhe permitem ceder a impulsos que ele pode, pelo menos em parte, disfarçar.
Não tenho a pretensão de ensinar: quero apenas que minha exposição não provoque interpretações falsas naqueles que ainda precisam abrir o seu caminho. Gostaria que as pessoas soubessem que não podem abordar a cor como se entrassem por uma porta aberta, que é necessário passar por um rigoroso preparo para ser digno dela. Mas, antes de tudo, é evidente que devemos ter um dom da cor, como o cantor deve ter voz. Sem esse dom, não podemos chegar a lugar nenhum, e nem todos podem dizer como Corregio: 'Anch’io son pittore.' O colorista faz sentir sua presença até mesmo num simples desenho a carvão.”  

Meu caro Sr. Clifford, chego ao fim de minha carta. Comecei-a para dizer-lhe que compreendo o trabalho que está tendo comigo no momento. E vejo que, obedecendo a uma necessidade íntima, fiz desta carta uma expressão do que sinto sobre o desenho, a cor e a importância da disciplina na educação de um artista. Se acha que todas essas minhas reflexões podem ser úteis a alguém, faça com esta carta o que lhe parecer melhor."