sábado, setembro 28, 2013

Dante Alighieri - A Palavra Entre o Desenho e o Mármore



  






















Gustave Doré. Dante e Beatriz. Paraíso 
 
A logofania  trata-se de um conceito, de minha inventiva, que une o Logos (palavra, discurso, razão) à phanestai (manifestação, revelação do ser e das coisas), os sentidos – rede de percepções físicas – aos signos, revelando-os enquanto unidade em uma verdade-variação e extremo labor de linguagem. Em busca do dizer-se a voz poética, seja em verso ou em prosa, une as matrizes da linguagem (verbal, sonora e visual) e do pensamento para traduzir, alcançar e re-velar o indizível, sem desprezar o silêncio da página que cabe ao leitor: a entrelinha.
Desde os mármores da Grécia, sabemos que as mãos criadoras espreitavam as vozes dos deuses para conceber suas obras. No mundo bíblico também imperam a physis (natureza) e o nomos (convenção). O logos divino, n’A Criação, demonstra que foi através da palavra, do verbo dicendi que o espírito de Deus concedeu forma à terra, livrou-se do abismo e deixou de pairar sobre as águas: “Deus disse: Faça-se a luz! E a luz foi feita [...] Deus Chamou à luz DIA, e às trevas NOITE [...] e declarou o firmamento CÉU (Gênesis I, 3-4)
Umberto Eco no livro A busca da Língua Perfeita diz que não se sabe ao certo em que língua Deus fala a Adão. Grande parte da tradição pensaria em uma espécie de língua inspirada por iluminação interior com a qual, como aliás ocorre também em outras páginas da Bíblia, Deus se expressa por meio de fenômenos atmosféricos, trovoadas e relâmpagos. Conclui Eco que se assim se deve entender, está então esboçada a primeira possibilidade de uma língua que, embora não seja possível traduzir, com termos de idiomas conhecidos, é porém entendida por quem a ouve, em virtude de um dom ou estado de graça particular. Poderíamos atribuir o dom ao pensamento, e o estado de graça aos sentidos psico-físicos, tudo então se completa na semiose posto que o signo une o inteligível ao sensível, agenciando a logofania.
Ainda em Gênesis (2,19), diz-se que Deus “formou da terra toda a espécie de animais campestres e aves do céu e os conduziu ao homem, para ver como ele os chamaria, e para que tal fosse o nome de todo animal vivo, qual o homem o chamasse”. Referenda Umberto Eco que propõe-se aqui, com certeza, o tema do Nomoteta, comum a outras religiões e mitologias, isto é, do primeiro criador da linguagem.
O primeiro texto em que o mundo cristão da Idade Média aborda organicamente um projeto de reflexão sobre uma língua perfeita é o De Vulgari Eloquentia, de Dante Alighieri, escrito provavelmente entre 1303 e 1305. Nesta obra, Dante parte de uma discussão hoje óbvia para nós, mas de extrema importância para um revisionismo histórico: existe uma pluralidade de línguas vernáculas, e o vernáculo se opõe, enquanto língua natural, ao latim como modelo de gramática universal, mas artificial.
Dante afirma que antes da construção blasfema da Torre de Babel, existia uma língua com a qual Adão falara com Deus e com seus descendentes, mas com a confusion linguarum nasce a pluralidade das línguas. A segunda parte (incompleta) do tratado De Vulgari Eloquentia esboça as regras de composição do único e verdadeiro vernáculo ilustre, ou seja, a língua poética, que se opõe às línguas da confusão, como a que reencontra a afinidade primordial com as coisas que foram próprias da língua adâmica. Deste modo, a concepção de linguagem concebida por Dante é a mais perfeita tradução do meu conceito de logofania.
Para ler a Divina Comédia, cabalmente, deve-se privilegiar o trabalho estético-semiótico da linguagem realçando o aspecto plástico e sonoro da poesia dantesca. O estudo da imagem-som faz-se fundamental, posto que na obra de Dante não basta a palavra habitual dicionarística. Ele cria palavras novas e versos cujo sentido não consta em nenhum idioma como em “Pape Satan, Pape Satan aleppe” no canto VII do inferno proferido por mais um demônio, no verso em questão – que consta em itálico e com aspas - trata-se de Pluto. Na guarda do quarto círculo ele reage com linguagem ininteligível à entrada de Dante, mas é silenciado por Virgílio, que o assiste com apoio divino. Neste canto os avaros e os pródigos, divididos em dois grupos adversos e empurrando com os peitos nus grandes pesos, perfazem cada qual a meia volta do círculo em sentidos opostos até se embaterem, e retomam caminho em sentido inverso, para chocarem-se de novo no ponto oposto do círculo.
Depois de uma argumentação de Virgílio  sobre a vaidade e a fortuna, migram os poetas para o quinto círculo, no qual nas águas escuras e lamacentas do Estige estão os iracundos: na superfície os raivosos violentos a se esmurrar e, completamente submersos, os tristes rancorosos se lamentando. O demônio “Pape Satan Aleppe” é derrotado:
Quali dal vento/le gonfiate vele/coggiono avvolte, poi che l’alber fiacca,/tal cadde a terra la fiera cruedele.”(Como as infladas veias de um barco/caem numa pilha se o mastro fraqueja,/tombou ao chão a fera cruel).

É deslumbrante a força plástica da imagem, o sinestesismo, a cromossonia aliterante da fricativa sonora “v”, levando a linguagem a um grau de expressão que busca concretizar o inefável, o inconcebível, como uma lufada de aniquilamento da magnitude contra a sordidez:

Colui lo cui saver tutto transcende,/ fece li cierli e die lor che conduce/si, ch’ogne parte ad ogne parte splende,” (Ele cujo saber tudo transcende,/         fez os céus e quem os conduz se em toda parte cada parte esplende.                                                               

Vale ressaltar o poema de Manuel Bandeira “Canção do Vento e da Minha Vida”, no qual o mesmo processo da imagem-som se repete: “O vento varria os frutos,/O vento varria as flores/E a minha vida ficava/Cada vez mais cheia/De frutos, de flores, de folhas.”

A Divina Comédia”, através de uma excelente carpintaria, exibe uma poética dotada de grande força ética e estética. Dante Alighieri não é senão o revisor da conexão da cultura medieval com a cultura clássica e o pai da poesia moderna. Não foi por acaso que artistas plásticos de nacionalidades e épocas distintas se aventuraram a ilustrar  sua obra, tais como o renascentista Sandro Botticelli de origem italiana e no século XIX o célebre gravurista Doré e o excelente escultor Auguste Rodin, por quem sua aluna  Camille Athanaïse Cécile Cerveaux Prosper nutriu uma paixão mal sucedida.                    
 A Divina Comédia representa a junção das quatro virtudes cardeais (força, justiça, prudência e temperança) com as virtudes teologais (fé, esperança e caridade) e do ponto de vista filosófico é bastante eclética, pois Dante abraçou, sem discriminação, todas as correntes do pensamento, gneseológicas, morais  e religiosas, que o haviam precedido e que estavam vivas no seu tempo. N’A Divina Comédia  há uma enorme quantidade de personagens mitológicos e históricos. Toda a narrativa se constrói através do diálogo de Dante com Virgílio, no Inferno e no Purgatório, e Beatriz e São Bernardo no Paraíso. O padre Antonio Vieira dedicou o belo “Sermão do Mandato”(1650), sobre o amor místico de Cristo, a São Bernardo, em minha opinião, um texto definitivo sobre o mistério magnum do amor: Amo, quia amo, amo ut amem: amo, porque amo, e amo para amar. Quem ama porque o amam, é agradecido; quem ama, para que o amem, é interesseiro; quem ama, não porque o amam, nem para que o amem, esse só é fino.  
Outros personagens também narram sua sorte. N“A Divina Comédia” a estratégia discursiva se constrói através de uma força imaginativa capaz de dotar figuras plásticas e sonoras de uma concretude simbólica que cristaliza, presentifica até o sentir e o pensamento mais abstratos, sejam eles filosóficos ou teológicos, as descrições astronômicas, as fábulas, as invocações históricas ou os sonhos, as esperanças e desesperanças do ser humano. A imagem-som muda de acordo com a situação que representa e, consequentemente, há diversidades de linguagens significativas entre o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Ao comparar esta obra de Dante com a dos gravuristas que a ilustraram e as peças escultóricas, perceberemos que não se trata apenas de uma reprodução, mas de recriações que rompem com a visão logocêntrica da dependência linguística da imagem, mesmo quando elas têm como base o texto literário. Esta afirmação se constitui já como o problema que nos levaria a escrever uma tese.
 

Sandro Botticelli, A Divina Comédia, Paraíso (desenho, 1485/90)         

Em um livro de publicação recente, intitulado Imagem (Cognição, Semiótica, Mídia), Lucia Santaella e Winfried Nöth, à luz da semiótica de Peirce, atualizam a discussão sobre a imagem e tempo. Questionando a teoria de Jaques Aumont, que estabelece a distinção imagem-temporalizada e não-temporalizada, defendem ser esta nomenclatura muito sujeita à ambiguidades, pois se considera, hoje, que nenhuma imagem, nem mesmo aquelas que costumam ser chamadas de imagens fixas, pode prescindir do tempo, visto que toda imagem, de um modo ou de outro, está impregnada de tempo. Dizem que a tal oposição advém de uma identificação estrita e exclusiva – bastante aristotélica – entre tempo e movimento e, em contra partida, louvam a distinção que G. Deleuze estabeleceu, com base em Bergson, entre imagem-movimento e imagem-tempo. Nesta denominação deve-se levar em consideração o dispositivo (meio) em que a imagem é reproduzida.

Ainda no campo da relação entre as artes, vale citar também a obra de Santaella intitulada “Matrizes da Linguagem e Pensamento – Sonora, Visual, Verbal”. Sem negar a multiplicidade das linguagens (literatura, música, teatro, desenho, pintura, gravura, escultura, arquitetura etc) e a variedade de suportes, meios, canais em que as linguagens são materializadas e veiculadas, que segundo Santaella há uma tendência histórica e antropológica de que essas relações cresçam cada vez mais. Ela defende que por baixo  dessa multiplicidade manifesta, há três matrizes lógicas (sonora, visual, verbal) a partir das quais, por processo de combinação e mistura, originam-se toda as formas diferenciadas de linguagem.

Para abordagem intersemiótica d’A Divina Comédia, especificamente, são valiosas as contribuições de Ernest Curtius em sua obra “Literatura Européia e Idade Média Latina” que nos oferece um excelente panorama da Idade Média e da obra de Dante do ponto de vista histórico, filosófico e literário. Ao situar Dante na  bela scuola da épica latina, não só aponta as raízes d’ A Divina Comédia como afirma ser Dante o poeta que conduz a poesia da Antiguidade ao mundo moderno. No capítulo referente à poesia e teologia encontramos discussões de grande valia que assinalam a logofania  n’A Divina Comédia. A partir das teorias de Albertino Mussato e Giovanni Del Virgílio, entrelaçam-se argumentos sobre os mitos pagãos, as sagradas escrituras e o caráter divino da linguagem. Fala-se do Vate como vasos de Deus, diz-se também que a poesia pode valer como filosofia. Teologia significa teoria especulativa da origem do mundo, a teologia mítica é aquele de que se servem os poetas.
O poeta theologus, é pois, uma antiga criação grega, que por intermédio dos latinos e da patrística, chegou ao conhecimento da Idade Média, prestando-se particularmente a uma reinterpretação cristã. Temos  que fazer um bom passeio pela filosofia, principalmente pela República de Platão, a Poética  e a Metafísica de Aristóteles e escritos de Santo Agostinho e Tomás de Aquino, todos ocupados em discorrer sobre a natureza da linguagem e seu caráter filosófico e divinatório imprescindíveis para o agenciamento da logofania.

A obra de Umberto Eco, A Busca da Língua Perfeita, esboça uma pesquisa sobre o início da comunicação entre os homens. Eco faz um percurso investigativo sobre as mais diversas linguagens e o sonho de alcançar uma língua originária. Ele afirma que para Dante a faculdade da linguagem define-se como disposição de associar significados racionais com significantes percebíveis pelos sentidos. Dante atribuía somente ao homem o dom de falar. N’A Divina Comédia o labor consiste em fugir da linguagem convencional para expressar o que a linguagem ordinária não diz, encontrar-se em meio caminho da vida numa selva oscura  entre parole oscuro  e de sentido duro (il senso lor m’è duro), ser tomado por uma lufada de negro vento, singrar rios vermelhos de sangue e selvas de homens-árvores em busca da razão, da completude do ser, eis a logofania em Dante, uma aventura entre sentidos-signos: “Ahi quanto a dir qual era è cosa dura”(Ah! que a tarefa de narrar é dura.) O inferno é o lugar cego e mudo de todo lume.

(Rodin. O Pensador)
 
N’A Divina Comédia, através do sinestesismo, a palavra vai dialogando com as matrizes imagéticas e sonora da linguagem, recriando o gênero épico, transcendendo a convencionalidade da língua, das ideologias medievais e fazendo a ponte entre o mundo antigo e o moderno. A editora Villa Rica traz o texto de Dante e as 136 gravuras de Doré. O Museu Rodin, na França, reúne as peças escultóricas mais expressivas como: O Pensador (representa a figura de Dante contemplando a própria obra), A Porta do Inferno (1880), O Beijo (1886) dedicado ao amor trágico de Paolo Malatesta e Francesca da Rimini. O beijo proibido aos amantes, mas imposto pelo amor, e mais que isso, pela  leitura conjunta de um livro: Amor, ch' a nullo amato amar perdona. Contudo, os que habitam o inferno são definidos como aqueles que perderam o bem do intelecto. O amor para Dante é a virtude que transcende o sofrimento.