sábado, junho 09, 2012

Liturgia dos Nomes: Desde os Mármores da Grécia

                                                                      Michelangelo

                                            (Prefácio ao Livro)

Desde os mármores da Grécia, sabemos que as mãos criadoras espreitavam as vozes dos deuses para conceber suas obras. Diz Heráclito (séc. VI a.c.): "Ethos Antrópo Daimon". Traduzindo ao modo grego, dizemos que "O homem mora na proximidade do Deus." Ao interpretar esta sentença, Heidegger adverte que Ethos significa estada (aufensthalt), lugar de morada. A morada do homem retém o advento daquilo ao qual em sua essência pertence, ou seja, retém o Logos. Se "a linguagem é a casa do ser e em sua habitação mora o homem," como heidegger afirma, podemos dizer que o Logos o determina. O poeta é aquele que diz, e ao dizer consuma-se como o agenciador da manifestação do ser, liberta a linguagem da gramática para um contexto extra-ordinário concretizando o deus heraclítico, o demiurgo e criador que lança luz  e sombra ao cosmos, o gera e o ordena. A re-velação poética é lanterna furta-fogo, jogo de transparência e opacidade, pressupõe também o mundo velário. 
 No mundo bíblico também impera a voz e o nome. O Logos divino, n’A Criação, demonstra que foi através da palavra, do verbo dicendi que o espírito de Deus concedeu forma à terra, livrou-se do abismo e deixou de pairar sobre as águas: “Deus disse: ‘Faça-se a luz!’ E a luz foi feita.[...] Deus chamou à luz DIA, e às trevas NOITE.” O dizer é elemento de criação. O poeta Pietro Wagner a partir do título que designa o seu livro, Liturgia dos Nomes, insere o leitor em um universo ficcional onde a palavra ultrapassa a condição servil de mero signo comunicativo para alcançar o estatuto de elemento genesíaco de uma realidade supra-individual, afirmando-se cada vez mais como signo estético.  
            Liturgia dos Nomes é o exemplo de que toda grande obra é um convite a persistir na inteligência, uma intimação a repensar o sentido da arte e a  convalidar sua contribuição à humanidade. Neste livro o que temos é uma sagração da palavra, dos nomes, como elementos fundantes dos seres e da própria existência. Diz a voz poética em dois poemas para duas vozes -I:
 
                        “escutai
                        aqui não é mais agora
                        não há mais pedra ruína ou escuro
                        dos tempos e do vermelho desta casa
                        escutai
                        aqui é mais ontem que a história
                        a casa que agora vedes neste não do espaço
                        é palavra
                        escutai       
                
       Temos uma síntese conceitual do conjunto de poemas que compõem  a liturgia wagneriana. É marcante o jogo de vozes, a polifonia que caracteriza o poema. As duas vozes, que aparecem bem demarcadas pela alteração dos caracteres -letra comum/itálico- operam uma tensão temática através de jogos semânticos. Porém, a contraposicão entre as vozes, na obra de Pietro Wagner, estruturalmente tem um resultado que, comparado à música, está mais próximo da sinfonia beethoviana que de qualquer obra de Wagner seu homônimo. Na obra clássica de Beethoven os temas opostos funcionam como marcadores de intensidade e preparadores para a chegada do locus amoenus que se apresenta como uma espécie de síntese das oposições. Diferentemente da obra romântica de Richard Wagner que opera tensões de elementos díspares privilegiando a estrutura meramente antitética.
A primeira voz  do poema é uma instância afirmativa, faz da palavra sua casa anunciando que, desta, não guarda mais em si  nem pedra, nem ruína, escuro ou vermelho. Todos estes elementos, signos do infortúnio existencial, são exauridos e despojados de  materialidade concreta, são o pretérito de um tempo poético que busca festejar no agora a potencialidade de assepsia do verbo, da palavra. A segunda voz aparentemente opõe-se a todos os elementos anteriores assumindo uma carnalidade, uma materialidade que confronta o signo com o próprio objeto que ele pretendia representar: o vermelho convive com o sangue. Esta  segunda voz ,a princípio,  questiona, duvida: “sangue/ algum sol abrandou-se em mim / ou tenho nas mãos este vermelho sangrado?”  Prossegue: “ não é sangue/ tingem-me a pele sóis extintos/ e a luz que habita esta esfera/ abriu suas asas nos ventos das batalhas/ trouxe o sangue dos exércitos mais antigos/ aos punhos que agora são minhas armas[...]/ os elementos etéreos não apunhalam.” Mas, impera o sangue como índice do vermelho e do sol, sendo este também um índice do próprio tempo. Dá-se, assim, a preparação para o locus amoenus que se concretiza na reincidência da primeira voz no terceiro conjunto estrófico: “retorna/ retorna este pássaro minério que teu olho principia/àquela calmaria quando o vento inverte-se à noite/ deixa este pássaro velar teu sono/ (tal ave renova os ares em dias de acidez)/ depois inventa uma pátria para o teu pássaro/ e um telhado de açucenas para o vôo metal de tua lágrima.” Podemos fugir dos adjetivos para qualificar este paroxismo de maestria artística? É como se estivéssemos diante de um épico que se preocupa em escrever apenas as partes líricas de suas epopéias. 
       Trata-se de uma epopéia dos elementos: pedra, casa, vermelho, palavra, sangue, sóis, pássaro, ares, aço, lágrimas, naves, pátria. O que temos na  poesia wagneriana é uma ausência de phatos, visto que o sangue humano funciona apenas como referência cromática do vermelho/sol eufemizando-se em um marcador temporal. O elemento que sangra, neste poema para duas vozes, é o tempo, posto que as armas são o punho da voz enunciativa que metonimicamente referencia o esgrimista da linguagem, o poeta: “com teu verbo pára agora a sangria minha hora/ enquanto é dia enquanto é viva esta hora[...]/ pára/porque agitas um grão de século nos meus dias/ teu verbo cala o tempo com mãos exatas/ perdoa à terra a prata que a terra impõe ao suor do teu cavalo/ e te desfaz em luz/ porque o tropel do tempo é uma luz que não se adia.” A voz poética exalta o poder da palavra, reconhece a força do verbo, sua epopéia atravessa o mar caudaloso das sílabas, conclama a palavra como uma forma de ancorar o tempo aliterando os versos camonianos: “Porque, enfim tudo passa: / Não sabe o tempo ter firmeza em nada, / E nossa vida escassa/  foge tão apressada/ que quando se começa é já acabada.” O tempo é o tecido invisível no qual Pietro Wagner vai cosendo com palavras sua  nave para singrar o mar, elemento que perpassa  toda  Liturgia dos Nomes:     

com tuas mãos cânticos serão ouvidos nos oceanos
                        quando virás com tuas águas
                        quando soubermos de ti e as pontes se elevarem
                        será amanhã porque tens o tempo em teus braços
                        e o tempo é memória dessangrada
mareja em ti maré de ti o mar tua maresia

oceano sem barcos que governa os ventos”  

 
A palavra mar e o nome são os elementos que realizam  a logofania[1] na poesia wagneriana, a exemplo do poema citado que denomina-se calipso, temos uma revisitação dos grandes personagens que constituem a  mitologia das águas: Ulisses e Penélope. Surgidos dos oceanos, o mar parece lhes conceder existência:

“ulisses 

para dizer tua ave
não tenho ventos nem barcos
para dizer-te ave
fiz da minha casa um mastro
que há de te levar menino pelas horas
por todos os cantos do mar meu nome
teu metro mais provável” 

Pietro Wagner resgata o mar do poeta épico com toda  a força da tradição mítica da oralidade presente na Odisséia de Homero. Sua poesia tem um caráter extremamente elaborado, imagético, sinestésico, próximo das construções de  Baudelaire, Rimbaud, ou mesmo de Pound, porém, dado o trabalho que Wagner realiza com a sonoridade sabemos ser este poeta um leitor de Dante. Ainda que abdique da métrica e da rima convencional, sua poesia rende-se ao récito, é música aos ouvidos. Walter Benjamin, em O Narrador - ensaio em que tece considerações sobre a obra da Nikolai Leskov - assinala que a arte de narrar está em vias de extinção. Acentua que são cada vez mais raros os que sabem narrar devidamente. Afirma Benjamin: “a experiência que passa de pessoa para pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”.
Relacionados também à logofania Wagneriana, encontramos personagens  de Shakespeare tais como Lavínia, que nomeia o primeiro poema  do livro, Marco Andrônico e Tito Andrônico. Todos estes seres de linguagem, sobretudo Lavínia que tem sua língua cortada na obra shakespeareana, falam através da voz poética. Esta plurivocalidade  em Liturgia dos Nomes pontua ainda mais o caráter dramático, oral da obra de Pietro Wagner. Toda a eloqüência shakespereana ressurge nos temas wagnerianos: o sangue, as batalhas, os punhais, os sóis extintos, a brancura amarga, a coragem dos assassinos, porém idiossincraticamente marcados por um estilo que prima pela contenção, pelo anti-phatos. O que nos leva a crer que estamos diante de uma poiesis eminentemente construída aos moldes dos padrões clássicos, onde Pietro Wagner parece fazer suas as palavras de Sêneca em Ad Helviam Matrem de Consolatione: “Toda dor que passa os limites do suportável tira necessariamente a faculdade de escolher as palavras, se amiúde sufoca também a voz.” A poesia wagneriana é a desconstrução do aforismo de Werther: “estou contente e feliz, e, portanto, sou ruim narrador.” Em Liturgia dos Nomes “os elementos etéreos não apunhalam”, as palavras brincam de enciumar os signos. O poeta concede voz  à Lavínia que também é palavra, sendo a palavra o próprio  mar:

“se pudesse cantar Lavínia

[...]

no meu sangue agora há uma onda que se precipita

[...]

que meu nome
seja letra que risca a aurora das palavras
seja evasão de inverdades na necessidade dos signos
a loucura que principia
os vales que se arqueiam nos movimentos da terra

 [...]

quero o benefício do negro no branco do papel
a luz recolhida pelo sol quando se põe”

Na poesia de Pietro Wagner o sujeito da enunciação dilui-se sempre na materialidade da linguagem, participa dos elementos. No sangue de Lavínia precipitam-se as ondas, corre em sua veias um elemento marinho. Mas Lavínia é também nome e risca-se na aurora das palavras, é advento logofânico. O labor de linguagem wagneriano pode ser definido e sistematizado pelos versos: “ que meu nome/ seja a letra que risca a aurora das palavra/ seja evasão de inverdades na necessidade dos signos”. Sabemos que a verdade, como categoria que conduz-nos à ética, permeia todas as artes e, por conseguinte, faz-se parte integrante da estética. Esta, porém, requer o redimensionamento da concepção de verossimilhança, posto que a verdade estética não deve levar a termos a noção platônica da mímese que opunha a visão eikastika (imitação verdadeira) à fantastika (falsa imitação). A verdade artística compromete-se com a criação, portanto instaura uma concepção particular inscrevendo sempre o universal. Para Aristóteles, em sua poética, se um poeta representar impossíveis cometerá erros menos graves do que se não atingir a maestria artística própria do seu ofício: “(...) Pois falta menor comete o poeta que ignore que a corça não tem cornos, que o poeta que a represente de modo não artístico”. 
A noção aristotélica da verdade enquanto invenção, instauração de uma releitura do mundo, tem sua implicação, ou mesmo convalidação, na verdade heterocósmica de Alexander Gottlieb Baumgarten que sistematizou a estética. A verdade heterocósmica é aquela que apresenta as coisas de um outro universo como possíveis de serem entendidas pelo conhecimento médio dos homens. Citando Tibulo, diz Baumgarten a respeito do Ulisses homérico: “ou estes fatos famosos aconteceram em nosso mundo verdadeiro no sentido estritíssimo ou a fábula criou um novo mundo para suas viagens (verdade heterocósmica)”.
A poesia de Pietro Wagner instaura uma concepção de verdade heterocósmica, como obra  estética calcada no princípio matemático  da construção e da inteligência, aponta para a releitura do mundo factual através da instauração de um novo mundo. Lança luz sob o que se oculta à percepção maculada cotidianamente pelo alfa negativo ligado à estesia: “an-estesia”. Em Liturgia dos Nomes o autor demonstra ter plena consciência de que a arte, a poesia, é uma máquina de acordar sentidos e agenciar signos. Só quando desacostumamos nosso olhar apreciamos o romper da aurora ou o pôr do sol como um quadro cujo pintor, inesgotavelmente, matiza sua tela com cores novas a cada dia. O poeta é como este pintor que, em verdade, remineraliza o que pré-existe codificando não o novo, posto que não acreditamos na durabilidade da vanguarda, mas o eternamente renovável. Ao poeta cabe a reinvenção da sintaxe habitual. Com base nesta premissa podemos entender porque a “filha da manhã, Aurora de róseos dedos” homérica  foi revisitada por Pietro Wagner representando alegoricamente, em sua poesia, a própria escrita.
Liturgia dos Nomes deixa-nos claro não ser a verdade absoluta o objeto de atenção do esteta. Mas a verdade universal, plural, que dá-se através do des-velamento da realidade factual e apresenta-se homóloga à alétheia grega. Ao ler a obra de Pietro Wagner aumentamos nossa certeza de que a arte conduz-nos ao saber, é sempre metáfora epistemológica que não se esgota em uma possibilidade única de entendimento. Antes propicia que a semiose agencie-se de acordo com o poder de variação que o objeto artístico se permite. A verdade-variação da obra de arte, como estabelece Umberto Eco em Os Limites da Interpretação, limita-se ao vocabulário que a sustém. Neste termos, em Liturgia dos Nomes, também não podemos variar ad infinitum em nossa leitura, sem correr o risco de trair o horizonte de expectativa potencializado pela obra.



[1] A logofania é um conceito - criado por mim - que une o Logos (palavra, discurso, razão) à phanestai (manifestação do ser), os sentidos, rede de percepções físicas, aos signos revelando-os enquanto unidade em uma verdade-variação e extremo labor de linguagem. In: TRAVASSOS, Jacineide. (1998). A Logofania em Água Viva de Clarice Lispector. Recife, dissertação de Mestrado, UFPE.