Michelangelo
(Prefácio ao Livro)
[...]
(Prefácio ao Livro)
Desde os
mármores da Grécia, sabemos que as mãos criadoras espreitavam as vozes dos deuses
para conceber suas obras. Diz Heráclito (séc. VI a.c.): "Ethos Antrópo Daimon". Traduzindo
ao modo grego, dizemos que "O homem
mora na proximidade do Deus." Ao interpretar esta sentença, Heidegger
adverte que Ethos significa estada
(aufensthalt), lugar de morada. A morada do homem retém o advento daquilo ao
qual em sua essência pertence, ou seja, retém o Logos. Se "a linguagem é a casa do ser e em sua habitação mora
o homem," como heidegger afirma, podemos dizer que o Logos o determina. O poeta é aquele que diz, e ao dizer consuma-se
como o agenciador da manifestação do ser, liberta a linguagem da gramática para
um contexto extra-ordinário concretizando o deus
heraclítico, o demiurgo e criador que lança luz
e sombra ao cosmos, o gera e o ordena. A re-velação poética é lanterna
furta-fogo, jogo de transparência e opacidade, pressupõe também o mundo
velário.
No mundo bíblico também impera a voz e o nome.
O Logos divino, n’A Criação, demonstra que foi através da
palavra, do verbo dicendi que o
espírito de Deus concedeu forma à terra, livrou-se do abismo e deixou de pairar
sobre as águas: “Deus disse: ‘Faça-se a luz!’ E a luz foi feita.[...] Deus
chamou à luz DIA, e às trevas NOITE.” O dizer é elemento de criação. O
poeta Pietro Wagner a partir do título que designa o seu livro, Liturgia dos Nomes, insere o leitor em
um universo ficcional onde a palavra ultrapassa a condição servil de mero signo comunicativo para alcançar o
estatuto de elemento genesíaco de uma realidade supra-individual, afirmando-se
cada vez mais como signo estético.
Liturgia dos Nomes é o exemplo de que
toda grande obra é um convite a persistir na inteligência, uma intimação a
repensar o sentido da arte e a
convalidar sua contribuição à humanidade. Neste livro o que temos é uma
sagração da palavra, dos nomes, como elementos fundantes dos seres e da própria
existência. Diz a voz poética em dois poemas para duas vozes -I:
“escutai
aqui
não é mais agora
não
há mais pedra ruína ou escuro
dos
tempos e do vermelho desta casa
escutai
aqui é mais ontem que a história
a
casa que agora vedes neste não do espaço
é
palavra
escutai
Temos uma síntese conceitual do conjunto
de poemas que compõem a liturgia
wagneriana. É marcante o jogo de vozes, a polifonia que caracteriza o poema. As
duas vozes, que aparecem bem demarcadas pela alteração dos caracteres -letra
comum/itálico- operam uma tensão temática através de jogos semânticos. Porém, a
contraposicão entre as vozes, na obra de Pietro Wagner, estruturalmente tem um
resultado que, comparado à música, está mais próximo da sinfonia beethoviana
que de qualquer obra de Wagner seu homônimo. Na obra clássica de Beethoven os
temas opostos funcionam como marcadores de intensidade e preparadores para a
chegada do locus amoenus que se
apresenta como uma espécie de síntese
das oposições. Diferentemente da obra
romântica de Richard Wagner que opera tensões de elementos díspares
privilegiando a estrutura meramente antitética.
A primeira voz do poema é uma
instância afirmativa, faz da palavra sua casa anunciando que, desta, não guarda mais em si nem pedra,
nem ruína, escuro ou vermelho. Todos
estes elementos, signos do infortúnio existencial, são exauridos e despojados
de materialidade concreta, são o
pretérito de um tempo poético que busca festejar no agora a potencialidade de assepsia do verbo, da palavra. A segunda
voz aparentemente opõe-se a todos os elementos anteriores assumindo uma
carnalidade, uma materialidade que confronta o signo com o próprio objeto que
ele pretendia representar: o vermelho
convive com o sangue. Esta segunda voz ,a princípio, questiona, duvida: “sangue/ algum sol
abrandou-se em mim / ou tenho nas mãos este vermelho sangrado?” Prossegue: “ não é sangue/ tingem-me a pele
sóis extintos/ e a luz que habita esta esfera/ abriu suas asas nos ventos das
batalhas/ trouxe o sangue dos exércitos mais antigos/ aos punhos que agora são
minhas armas[...]/ os elementos etéreos não apunhalam.” Mas, impera o sangue
como índice do vermelho e do sol, sendo este também um índice do próprio tempo.
Dá-se, assim, a preparação para o locus amoenus que se concretiza na reincidência da primeira voz no terceiro
conjunto estrófico: “retorna/ retorna
este pássaro minério que teu olho principia/àquela calmaria quando o vento
inverte-se à noite/ deixa este pássaro velar teu sono/ (tal ave renova os ares
em dias de acidez)/ depois inventa uma pátria para o teu pássaro/ e um telhado
de açucenas para o vôo metal de tua lágrima.” Podemos fugir dos adjetivos
para qualificar este paroxismo de maestria artística? É como se estivéssemos
diante de um épico que se preocupa em escrever apenas as partes líricas de suas
epopéias.
Trata-se
de uma epopéia dos elementos: pedra, casa, vermelho, palavra, sangue, sóis,
pássaro, ares, aço, lágrimas, naves, pátria. O que temos na poesia wagneriana é uma ausência de phatos, visto que o sangue humano
funciona apenas como referência cromática do vermelho/sol eufemizando-se em um
marcador temporal. O elemento que sangra, neste poema para duas vozes, é o tempo, posto que as armas são o punho da
voz enunciativa que metonimicamente referencia o esgrimista da linguagem, o
poeta: “com teu verbo pára agora a
sangria minha hora/ enquanto é dia enquanto é viva esta hora[...]/ pára/porque
agitas um grão de século nos meus dias/ teu verbo cala o tempo com mãos exatas/
perdoa à terra a prata que a terra impõe ao suor do teu cavalo/ e te desfaz em
luz/ porque o tropel do tempo é uma luz que não se adia.” A voz poética
exalta o poder da palavra, reconhece a força do verbo, sua epopéia atravessa o
mar caudaloso das sílabas, conclama a palavra como uma forma de ancorar o tempo
aliterando os versos camonianos: “Porque,
enfim tudo passa: / Não sabe o tempo ter firmeza em nada, / E nossa vida
escassa/ foge tão apressada/ que quando
se começa é já acabada.” O tempo é o tecido invisível no qual Pietro Wagner
vai cosendo com palavras sua nave para
singrar o mar, elemento que perpassa
toda Liturgia dos Nomes:
“com tuas mãos cânticos serão ouvidos nos
oceanos
quando
virás com tuas águas
quando
soubermos de ti e as pontes se elevarem
será
amanhã porque tens o tempo em teus braços
e
o tempo é memória dessangrada
mareja em ti maré de ti o mar tua maresia
oceano sem barcos que governa os ventos”
A
palavra mar e o nome são os elementos que realizam
a logofania[1]
na poesia wagneriana, a exemplo do poema citado que denomina-se calipso, temos uma revisitação dos
grandes personagens que constituem a
mitologia das águas: Ulisses e Penélope. Surgidos dos oceanos, o mar
parece lhes conceder existência:
“ulisses
para dizer tua ave
não tenho ventos nem barcos
para dizer-te ave
fiz da minha casa um mastro
que há de te levar menino pelas horas
por todos os cantos do mar meu nome
teu metro mais provável”
Pietro Wagner
resgata o mar do poeta épico com toda a
força da tradição mítica da oralidade presente na Odisséia de Homero. Sua poesia tem um caráter extremamente
elaborado, imagético, sinestésico, próximo das construções de Baudelaire, Rimbaud, ou mesmo de Pound,
porém, dado o trabalho que Wagner realiza com a sonoridade sabemos ser este
poeta um leitor de Dante. Ainda que abdique da métrica e da rima convencional,
sua poesia rende-se ao récito, é música aos ouvidos. Walter Benjamin, em O Narrador - ensaio em que tece
considerações sobre a obra da Nikolai Leskov - assinala que a arte de narrar
está em vias de extinção. Acentua que são cada vez mais raros os que sabem
narrar devidamente. Afirma Benjamin: “a experiência que passa de pessoa para
pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E entre as narrativas
escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais
contadas pelos inúmeros narradores anônimos”.
Relacionados
também à logofania Wagneriana,
encontramos personagens de Shakespeare
tais como Lavínia, que nomeia o primeiro poema
do livro, Marco Andrônico e Tito Andrônico. Todos estes seres de
linguagem, sobretudo Lavínia que tem sua língua cortada na obra shakespeareana,
falam através da voz poética. Esta plurivocalidade em Liturgia
dos Nomes pontua ainda mais o
caráter dramático, oral da obra de Pietro Wagner. Toda a eloqüência
shakespereana ressurge nos temas wagnerianos: o sangue, as batalhas, os
punhais, os sóis extintos, a brancura amarga, a coragem dos assassinos, porém
idiossincraticamente marcados por um estilo que prima pela contenção, pelo
anti-phatos. O que nos leva a crer que estamos diante de uma poiesis
eminentemente construída aos moldes dos padrões clássicos, onde Pietro Wagner
parece fazer suas as palavras de Sêneca em Ad
Helviam Matrem de Consolatione: “Toda dor que passa os limites do suportável tira necessariamente a
faculdade de escolher as palavras, se amiúde sufoca também a voz.” A poesia wagneriana
é a desconstrução do aforismo de Werther: “estou
contente e feliz, e, portanto, sou ruim narrador.” Em Liturgia dos Nomes “os elementos etéreos não apunhalam”, as
palavras brincam de enciumar os signos. O poeta concede voz à Lavínia que também é palavra, sendo a
palavra o próprio mar:
“se pudesse cantar Lavínia
[...]
no meu sangue agora há uma onda que se precipita
[...]
que meu nome
seja letra que risca a aurora das palavras
seja evasão de inverdades na necessidade dos signos
a loucura que principia
os vales que se arqueiam nos movimentos da terra
quero o benefício do negro no branco do papel
a luz recolhida pelo sol quando se põe”
Na poesia de Pietro Wagner o sujeito da enunciação dilui-se sempre na
materialidade da linguagem, participa dos elementos. No sangue de Lavínia
precipitam-se as ondas, corre em sua veias um elemento marinho. Mas Lavínia é também
nome e risca-se na aurora das palavras, é advento logofânico. O labor de
linguagem wagneriano pode ser definido e sistematizado pelos versos: “ que
meu nome/ seja a letra que risca a aurora das palavra/ seja evasão de
inverdades na necessidade dos signos”.
Sabemos que a verdade, como categoria que conduz-nos à ética, permeia todas
as artes e, por conseguinte, faz-se parte integrante da estética. Esta, porém,
requer o redimensionamento da concepção de verossimilhança, posto que a verdade
estética não deve levar a termos a noção platônica da mímese que opunha a visão
eikastika (imitação verdadeira) à fantastika (falsa imitação). A verdade
artística compromete-se com a criação, portanto instaura uma concepção
particular inscrevendo sempre o universal. Para Aristóteles, em sua poética, se
um poeta representar impossíveis cometerá erros menos graves do que se não
atingir a maestria artística própria do seu ofício: “(...) Pois falta menor comete o poeta que ignore que a corça não tem cornos,
que o poeta que a represente de modo não artístico”.
A noção
aristotélica da verdade enquanto invenção, instauração de uma releitura do
mundo, tem sua implicação, ou mesmo convalidação, na verdade heterocósmica de
Alexander Gottlieb Baumgarten que sistematizou a estética. A verdade
heterocósmica é aquela que apresenta as coisas de um outro universo como
possíveis de serem entendidas pelo conhecimento médio dos homens. Citando
Tibulo, diz Baumgarten a respeito do Ulisses homérico: “ou estes fatos famosos aconteceram em nosso mundo verdadeiro no sentido
estritíssimo ou a fábula criou um novo mundo para suas viagens (verdade
heterocósmica)”.
A poesia de
Pietro Wagner instaura uma concepção de verdade heterocósmica, como obra estética calcada no princípio matemático da construção e da inteligência, aponta para
a releitura do mundo factual através da instauração de um novo mundo. Lança luz
sob o que se oculta à percepção maculada cotidianamente pelo alfa negativo
ligado à estesia: “an-estesia”. Em Liturgia
dos Nomes o autor demonstra ter plena consciência de que a arte, a poesia,
é uma máquina de acordar sentidos e agenciar signos. Só quando desacostumamos
nosso olhar apreciamos o romper da aurora ou o pôr do sol como um quadro cujo
pintor, inesgotavelmente, matiza sua tela com cores novas a cada dia. O poeta é
como este pintor que, em verdade, remineraliza o que pré-existe codificando não
o novo, posto que não acreditamos na durabilidade da vanguarda, mas o
eternamente renovável. Ao poeta cabe a reinvenção da sintaxe habitual. Com base
nesta premissa podemos entender porque a “filha
da manhã, Aurora de róseos dedos”
homérica foi revisitada por Pietro
Wagner representando alegoricamente, em sua poesia, a própria escrita.
Liturgia dos Nomes deixa-nos claro não
ser a verdade absoluta o objeto de atenção do esteta. Mas a verdade universal,
plural, que dá-se através do des-velamento da realidade factual e apresenta-se
homóloga à alétheia grega. Ao ler a obra de Pietro Wagner aumentamos nossa
certeza de que a arte conduz-nos ao saber, é sempre metáfora epistemológica que
não se esgota em uma possibilidade única de entendimento. Antes propicia que a
semiose agencie-se de acordo com o poder de variação que o objeto artístico se
permite. A verdade-variação da obra de arte, como estabelece Umberto Eco em Os Limites da Interpretação, limita-se
ao vocabulário que a sustém. Neste termos, em Liturgia dos Nomes, também não podemos variar ad infinitum em nossa leitura, sem correr o risco de trair o
horizonte de expectativa potencializado pela obra.
[1] A logofania é um conceito - criado por mim - que une o Logos (palavra, discurso, razão) à phanestai (manifestação do ser), os
sentidos, rede de percepções físicas, aos signos revelando-os enquanto unidade
em uma verdade-variação e extremo labor de linguagem. In: TRAVASSOS, Jacineide.
(1998). A Logofania em Água Viva de
Clarice Lispector. Recife, dissertação de Mestrado, UFPE.