sábado, outubro 29, 2011

ecce fillius tuus



(então) Afastei-me de ti e vi com olhos banidos o rastro de tua nave
quando já não mais te vi
vi a cal viva da tarde

em tua casa limpa os armários acordam panos
e indagam do teu agora
do teu agora lontano
a casa vê em seus cantos
o veio azul transpirando
a casa vê seus perfumes
que o vento vai confiscando
a casa pensa suas nuvens
em suas cores e tramas
penélope fia e desfia
uma memória de ramas


penfi e desfi merama


noite e dia
notedi

ua merama
 

[Jairo Lima]

'Livro das Árias e das Horas e Pequeno Livro das Nuvens'
 Ed. Iluminuras (2000). Prefácio de Mário Hélio e Posfácio meu.


A poesia, na verdade,  é uma grande máquina de acordar sentidos e agenciar signos. Não foi por acaso que a palavra estética - que vem da raiz grega aisth do verbo aisthanomai e quer dizer sentir  com os sentidos,  rede de percepções físicas - apareceu pela primeira vez, investida de sua significação filosófica, em um estudo sobre a poesia empreendido por Alexander Gotlieb Baumgarten (1735). Para jairo Lima escrever  é, sobretudo, obedecer a um ritmo, perseguí-lo com a pátina das consoantes e a sonoridade das vogais. Conta  Paul Valery nas 'Memórias de um poema' que, inesperadamente, ritmos lhes eram impostos antes de se articularem com os significados da frase. Apesar de ser poeta-matématico, confessa Valery familiarizar-se muito bem com as idéias inesperadas, o mesmo não pensava sobre o ritmo. Citando Diderot: “Mes idées ce son mes catins”, afirma ser esta uma boa fórmula, mas não a aplicava a seus ritmos e perguntava-se o que deveria pensar deles. Jairo Lima não teria a  menor dúvida, sua poesia bem nos ensina que poetizar é  articular a imagem-som.
                                            
Esta poesia, intitulada 'ecce filius tuus', serve-nos de perfeita metonímia para referendar o processo composicional que perpassa toda a obra de Jairo Lima. No poema citado, observo um trabalho com o tecido literário em todos os seus níveis de elaboração: morfológico, sintático e semântico que subverte  o que se compreende por linguagem comum e teoria dos gêneros literários.

A grande personagem de 'ecce filius tuus' é Penélope, esta cambia-se, através da estrutura anagramática, de substantivo a puro som: 'penélope fia e desfia/ uma memória de ramas/ penfi e desfi merama/ noite e dia/ notedi/ ua merama.' Penélope é pura música, tessitura sonora: 'penfi e desfi', ou seja, as seqüências fônicas articuladas não têm natureza de mímese, de natura tota simul, ou seja, simulacro, mas a de um substituto. Neste sentido alcança o estatuto de signo, reconhecendo ser este, segundo a definição de Agostinho e, a posteriori, de Peirce , o que está em lugar de algo em sua ausência. Muta-se de ícone a índice, pois o significado do seu nome enquanto personagem mitológico apresenta-se em um primeiro nível de significação, mas é ressemantizado pela indicialidade do jogo morfológico de desconstrução e reconstrução supracitado, o plano de conteúdo (penélope enquanto ícone, imagem) passa a equivaler ao plano de expressão ( penélope enquanto índice, som). O mesmo acontece com os vocábulos fia e desfia ('penfi e desfi'), noite e dia ('notedi'), e uma memória de ramas ('ua merama'). É válido que guardemos a afirmação de Alfredo Bosi: 'a poesia, toda grande poesia, nos dá a sensação de franquear impetuosamente o novo intervalo aberto entre a imagem e o som'.

Não posso deixar de chamar a atenção, ainda, para a sincronização dos sentidos que se agencia através das sinestesias, das correspondances: 'penélope fia e desfia/ uma memória de ramas'. Aqui o recordar torna-se gesto e se dá através das mãos, do tato. Recuperando o título do poema, ecce fillius tuus, digo que os filhos de 'Penélope'  são 'ramas' táteis da memória. São muitos os momentos de acordar sentidos da poesia limaniana, dos quais citarei alguns para que possamos remirar a possibilidade de exercício do gosto estético: ' teu hálito chove a montanha - sol palustre desardente pupila', ainda: 'deixa passar tua água pela palavra hortelã para que o verdeclaro desta hora/ seja Pássaro Lago Estrela Sim amanhã.' Recomendo, fortemente, o livro.

* Jairo Lima é poeta, pernambucano, publicitário e dramaturgo.
   Escreve no 'Substantivo Plural': 

http://www.substantivoplural.com.br/author/Jairo%20Lima/