Jacineide TRAVASSOS[1]
POETRY AND ABSTRACT PAINTING: THE MUSIC OF COLOURS
ABSTRACT:
In this article we address the evolution of the Horatian doctrine of Ut Pictura Poesis, the flirtation between the arts, focusing on the relationship between space and time through a comparative analysis between poetry and abstract painting. We emphasize the virtues of words and colours, investigating the image-sound and image-movement relation. In conclusion, in our analysis, there is a structural homology between poetry and abstract painting in relation to the spatiality and temporality, which is also a category of music. The theoretical tools we apply to undertake comparative studies are critical guidance regarding aesthetics, literature and semiotics.
Keywords: Poetry. Painting. Aesthetics. Semiotics of Culture. Intersemiosis.
RESUMO:
Neste
artigo procuramos abordar a evolução da doutrina horaciana da Ut Pictura
Poesis, o flerte entre as artes, privilegiando a relação entre o espaço e o
tempo através de uma análise comparativa entre a poesia e a pintura
abstrata. Ressaltamos as virtualidades das palavras e das cores, investigando a
relação imagem-som e imagem-movimento. Concluímos, em nossa análise, que há uma
homologia estrutural entre as artes em questão no tocante à
espacialidade e temporalidade, sendo esta também uma categoria da
música. Os instrumentos teóricos, que adotamos para empreender esse
comparativismo, são referentes à crítica de orientação estética, literária e
semiótica.
INTRODUÇÃO
Sabemos que para investigar a relação
entre linguagem e realidade na poesia e na pintura, temos que alargar o
conceito de texto e entendê-lo semioticamente como discurso, processo que abarca
todas as artes. O texto, no âmbito semiótico, é fenômeno translinguístico e Jean Molino (1989, p.25),
como lingüista, também nos adverte que a base para a resolução da aporia, com
respeito à necessidade de se instituir um modelo geral de texto, consiste em
atribuir um sentido metafórico e heurístico à sua noção. Pergunta-se Molino: “O
historiador de arte em frente a um quadro, o arqueólogo frente a um monumento,
o geógrafo frente a uma paisagem, o sociólogo frente a um movimento social
estão na mesma posição de um intérprete junto a um texto?” (MOLINO, 1989,
p.26). Molino diz ainda que poderíamos, como boa medida, acrescentar que o
físico está diante da natureza como diante de um livro scrito, segundo a
fórmula de Galileu, em signos matemáticos.
Antes de Jean Molino, Iuri Lotman (1996,
p. 149) - no início do século XX - ressaltou o talento poliédrico de Lomonossóv,
um dos fundadores da semiótica da Cultura, para quem “o elo que une domínios
diferentes da vida no planeta é a linguagem”(MACHADO, 2003, p. 24). Segundo
Irene Machado (2003), a semiótica da cultura funda, com base no legado de
Lomonossóv, o moderno conceito de texto como um novo domínio de idéias
científicas onde operam as mais radicais formas de semioses. Os semioticistas
russos defendem a concepção do texto como unidade básica da cultura, e não do
sistema lingüístico. Nesse sentido, uma dança, uma cerimônia, uma obra de arte
e muitos outros produtos e manifestações culturais são considerados texto.
Os teóricos que tratam da intersemiose lançam luz
sobre as mesmas questões abordadas por Molino. Julio Plaza (1987), autor d’A Tradução Intersemiótica, aponta
Jakobson como o primeiro a discriminar os tipos de tradução: a interlingual, a
intralingual e a intersemiótica. Esta
última que nos interessa
particularmente, também denominada transmutação, foi por ele definida como aquela que consiste na
interpretação dos signos não verbais, ou de um sistema de signos para outro,
por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema, a pintura e
vice-versa. Diz Dominique Maingueneau que:
a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas
um espaço de troca entre vários discursos [...]. A prática discursiva se define
pela unidade de um conjunto de enunciados, e também é uma prática intersemiótica
que integra produções na dependência de outros domínios semióticos (pictural,
musical, etc.). ( MAINGUENAU, 1984, p.1-13)
Etienne Souriau (1983, p.11-13),
em seu livro intitulado A Correspondência
das Artes – Elementos de Estética Comparada, partindo de um aforismo de
Victor Hugo: “O vento são todos os ventos” cria a paráfrase: “A arte são todas
as artes”. Porém, Souriau afirma que a pesquisa, neste domínio, só será
interessante se banir e interdisser severamente as metáforas imprecisas, as analogias
confusas que são evocadas ao se transpor arbitrariamente para uma arte a
linguagem de outra. A respeito desta mesma questão, diz-nos Karel Boullart,
professor da Universidade de Gand:
As intuições mais corriqueiras a respeito das
‘correspondências’ das artes tendem, em sua maioria, a cair na metáfora.
Diz-nos que existem sonetos esculpidos e romances de composição arquitetônica,
mas um soneto não é uma escultura e um romance não é uma catedral. Mesmo um
poema manifestamente composto, segundo o princípio ‘música antes de mais nada’
(Verlaine) não é música propriamente dita: é, em primeiro lugar e
fundamentalmente, um poema. (BOULLART, 1987, p.72)
Acreditamos que Molino,
Lomonossóv, I. Lótman, Julio Plaza, Jakobson, Maingueneau, Etiene Souriau e
Boullart, implodem o paradigma tradicional do texto legando o critério de
textualidade e leitura, não só ao literário, mas também ao vasto domínio das
várias linguagens e sistemas de significação. Os teóricos que citamos enfatizam
bastante o fato de existir, em cada modalidade textual, qualias diferentes que
alteram o seu modo de significar. Daí a necessidade de nos afastarmos das
metáforas e analogias imprecisas, cientes que as artes dialogam entre si, mas
conservam sua materialidade artística própria. Em nossa investigação, afirmamos
uma correspondência entre a poesia e a pintura, cientes de que há uma
identidade de estruturas em uma variedade de meios.
A intersemiose, o diálogo entre
as artes, seja música, pintura ou cinema etc., jamais trata-se de um anseio eminentemente
da arte contemporânea. Muitos o quiseram: Os
gregos, Diderot (em carta endereçada a Abbé Batteaux escreveu: “Comparar as belezas de um poeta com as
de outro poeta é coisa que já se fez milhares de vezes. Mas congregar as
belezas comuns da poesia, da pintura e da música (…) eis o que resta fazer e o
que vos aconselho a acrescentar ao vosso Beaux-Arts réduit à un même
principe.” [2] os
poetas franceses, sobretudo Baudelaire (Les
Parfums, les couleurs et les sons se répondent), Rimbaud em Voyelles (A noir, E blanc…), Verlaine (De
la musique avant toute chose) e J. K. Huysmans (com seu personagem Des Esseintes), que alegoriza a própria
estética no seu romance simbolista A
Rebours. Outro exemplo dessa interatividade está em Scriabin n’O Poema do Êxtase (interdiscursividade entre dança, música,
cores, perfumes), lembramos ainda o ideário de uma completa fusão entre
escultura abstrata e tecnologia de construção expresso por J. J. P. Oud e
retomado na arquitetura por Walter Gropius e Le Corbusier. No âmbito das
correspondências, sincronização dos sentidos e signos poderíamos citar
exaustivamente, se é que já não o fizemos.
Ut pictura poesis
Como vimos, a noção de parentesco
entre as diversas linguagens artísticas constitui um topos revisitado e
remineralizado ao longo dos séculos, independente da qualia artística de quem o
realiza. A relação texto/tela, também não é uma prática recente, embora pouco
explorada ainda nos estudos contemporâneos. Jean Hagstrum (1958) em The
Sister Arts of
Literary Pictorialism and English Poetry from Dryden to Gray, embora
atenha-se à tradição inglesa, retraça a história da interrelação entre a
pintura e a poesia partindo de suas origens. Segundo Hagstrum dois nomes
apresentam-se como basilares nesta intersemiose: Horácio e Simonides de Cós.
Horácio, que criou a expressão Ut Pictura
Poesis em sua Ars Poetica , (anos 14 e 15 A .C.) postula: “Ut
Pictura Poesis: erit quae, si propius stes, te capiat magis, et quaedam, si
longius abstes; hace amat obscurum, volet hacc sub luce videri, iudicis argutum
quae non formidat acumen.”( HORÁCIO, 1989, p.73)[3]
A teoria implícita no axioma
horaciano orientou, por séculos, o caminho por onde havia de trilhar as
discussões sobre as artes, mantidas sob a custódia das relações entre as
representações imagéticas (pintura) e retóricas (poesia) fundadas sob a
distinção valorativa: signos naturais e signos artificiais, respectivamente.
Como salienta João Alexandre Barbosa (1994, p.11), esta concepção dominou,
sobretudo, os períodos clássico e romântico na história da arte e da
literatura. As comparações entre poesia e pintura eram mote perpétuo. Plutarco
atribui a Simonides de Cós a formulação de que “a pintura é poesia muda e a
poesia é uma pintura falante.” Baumgarten adverte que “é próprio da pintura representar
o que é composto; e este procedimento é um procedimento poético.” (BAUMGARTEN,
1993, p.26)
Gotthold Efrain Lessing (1998) é
apontado pelos historiadores da arte como o melhor leitor de Horácio em sua
época, pois, na verdade, Lessing o releu dando um grande passo adiante de suas
teorias. O seu tratado sobre as artes literárias e pictóricas data de 1766, foi
publicado sob o título de Laokoon, ou Os
Limites da Pintura e da Poesia. Suas indagações a respeito das artes são
apresentadas a partir do famoso conjunto escultórico Laokoon, que representava
o sacerdote troiano homônimo e seus dois filhos no momento de suas mortes, sob
os encalços de duas serpentes que os enroscam e os mordem. Uma das versões
sobre o fato narra que tal castigo deveu-se ao fato de Laokoon haver tocado os
preceitos de Apolo. A obra é atribuída ao escritor grego Alexandre de Rodes em
co-autoria dos filhos Atenodoro e Apolidoro.
Laokoon, aponta Aguinaldo
Gonçalves (1994, p.31) em seu Laokoon Revisitado. Relações Homológicas Entre Imagem e Texto,
pode ser definido como a “conjunção de várias tendências que se unem para um
único propósito”, ou seja, criticar o arqueólogo Johann Joachim Winckelmann em
suas Reflexões Sobre a Imitação das Obras
Gregas na Pintura e na Escultura (Gedanken Über die Nachahmung der Grie
Chischen Werker der Malerei und Bildhaverkunst, 1755). Podemos inferir,
pela sua linha de abordagem, que Winckelmann também se baseia na Arte Poética de Horácio, assim como no Tratado Sobre o Sublime de Longino,
privilegiando a obra escultórica como base de seus estudos. Porém seus
argumentos revelam frágeis noções e impressionismos sobre a literatura e as
artes visuais, sobretudo quando compara o Laokoon
com a Eneida de Virgílio e o Filoctetes, de Sófocles. De modo
contrário porta-se Lessin (1998, p.145) posto que desloca o comparatismo entre
a pintura e a poesia do campo movediço da dicotomia: signos naturais vs. signos
artificiais para a questão do espaço e do tempo.
Lessing possibilitou-nos pensar
as artes pictóricas e poéticas a partir do uso diferenciado de seus meios de
expressão: pintura (mímese do visível, dos corpos), poesia (mímese das ações).
Enfim, Lessing estabeleceu a pintura como a arte do espaço, por excelência, e a
poesia arte do tempo. Embora estas noções representassem um avanço para a época
(daí a nossa obrigação de revisitá-las), hoje tornou-se inconcebível tal
distinção, seja no campo da física, como bem nos demonstra Einstein, seja no
campo das artes, à luz das diversas correntes da filosofia, citamos a Poética
do Espaço de Gaston Bachelard como exemplo e, sobretudo sob o prisma da
semiótica.
Mukarovsky (1990, p.81) critica
Lessing por pensar que as artes são limitadas pelo caráter de seus materiais e
por acreditar que os artistas não devem tentar ultrapassar os limites impostos
por eles. Deste modo, considera que sua idéia base, hoje, encontra-se
ultrapassada. A. Gonçalves, ao revisar o Laokoon,
credita razão aos argumentos de Mukarovsky. Diz que “se aproximarmos a câmara
às conquistas da pintura e da poesia anteriores ao romantismo, notaremos que já
para aquela época tal idéia não procedia.” (GONÇALVES, 1994, p.32). Adverte
que, da maneira como Lessing conjecturou a respeito da poesia e da pintura, os
signos assumem, em sua teoria, um alto grau de superficialidade; são postos
apenas quanto imitadores de corpos e ações. Sabemos que as artes não seguem
este caminho ao correr dos tempos.
Diz Northop Frye que há um grau
de razoabilidade incontestável que fale-se do ritmo “quando se desenvolve no
tempo, e desenho, quando se distribui no espaço” (FRYE, 1993, p.81). Mas
salienta que:
[...] todas as artes possuem um aspecto temporal e um
espacial, embora estas categorias se desenvolvam de acordo com as
possibilidades materiais de cada arte e seu modo de estruturação. Referindo-se
à literatura, especificamente, ressalta que as obras literárias também se movem
no tempo, como a música, e se estendem em imagens, como a pintura. (FRYE, 1993,
p.81)
A Ut Pictura Poesis é comum a muitas épocas. Segundo Mario Praz, em
seu texto Literatura e Artes Visuais,
“desde os tempos remotos tem havido mútua compreensão e correspondência entre a
pintura e a poesia”. (PRAZ, 1982, p.2) Diz-nos que idéias foram expressas por
meio de pinturas, não só nos hieróglifos egípcios, como através de uma “longa e
assaz copiosa” tradição simbólica, parte da qual foi brilhantemente evocada por
Edgar Wind (1958), em seu livro acerca dos mistérios pagãos da Renascença
(Pagan Misteries in the Renaissance).
No Renascimento,
a relação poesia/pintura parecia inevitável, a exemplo do pintor Botticelli e
dos poetas Policiano e Ficino, que compunham influenciando-se mutuamente.
Muitos poetas, como Ariosto e Aretino, valeram-se de técnicas pictóricas para
escrever. Pintores, tais como os simbolistas Gustave Moreau, Rodolph Bresdin,
Odilon Redon, o expressionista Munch, entre muitos outros, extraíram idéias e
imagens dos escritos de poetas e romancistas. Mas, em se tratando de um estudo
intersemiótico, devemos afastar-nos das metáforas e analogias imprecisas, cientes
que as artes dialogam entre si, porém conservam sua materialidade de linguagem
e artística.
Poesia e pintura abstrata
Vimos que, dentro do enfoque da
teoria de Lessing, com base na teoria clássica da mímese, o espaço é o lugar
ocupado pelos corpos, pelos elementos estruturais da pintura: ponto, linha,
superfície e volume. De acordo com a semiótica, lembramos que o espaço deixa de
ser simplesmente um lugar ocupado pelas coisas e ganha força de linguagem.
Devemos revisitar a importantíssima teoria de Lessing, mas não podemos aceitar,
ao modo de Mukarovsky, Frye e A. Gonçalves, no domínio das artes, a separação
rígida das categorias de espaço e tempo.
Bem sabemos que a poesia, a
literatura, é imagem-som. Assim, temos uma só dimensão espácio-temporal na
poesia de Ungaretti:
ROSA EM CHAMAS
sobre um oceano
de campainhas
subitamente
flutua outra manhã
INFÂNCIA
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora”
(ALMEIDA, 2004, p.26)
(ALMEIDA, 2004, p.26)
Em Ungaretti a Imagem “oceano de
campainhas” é indicadora de uma grande hiperestesia, pois a água torna-se
metaforicamente sonora, ao passo que indica também passagem de tempo: “flutua
outra manhã”. No haicai de Guilherme de Almeida, igualmente hiperestésico, a “amora
e o sol”, degustados em simultâneo, instauram o movimento do tempo, a captação
do instante passado no tempo presente, como bem indica a expressão “chamava-se ‘Agora’
”. Guilherme de Almeida tenta captar, pintar ou fotografar o instante da
infância passada, ao modo de uma recordação
lírica, como a concebeu Emil
Staiger (1975, p.59-60): fusão do passado com o presente e fusão do eu com o
outro. Do mesmo modo, em homologia estrutural com a poesia, dá-se com a pintura
abstrata. Sendo o ponto índice de uma linha e formador dinâmico de outras
figuras na tela, como demonstra-nos Kandinsky, admitimos, também, uma
temporalidade na realização da dinâmica interna do quadro:
(Fig.1. Kandisnky, Improvisação Sonhadora)[5]
(Fig.1. Kandisnky, Improvisação Sonhadora)[5]
Ao estudar semioticamente a tela Improvisação Sonhadora, de Kandisnsky,
diz Walda Leite que “o objeto é percebido, não como parte do espaço, mas por
sua continuidade”. (LEITE, 1985, p.20) Adverte, ainda, que, desta maneira, o
objeto passa a ser signo, pois mantém uma profunda dialética com o tempo, que,
no caso, “é criado pela repetição de traços que espacializam a diacronia do movimento”.
(LEITE, 1985, p.21) Lembramos também que o elemento temporal pode ser
reconhecido através da dimensão longitudinal dos elementos estruturadores do
quadro. Leiamos um trecho de O cão Sem
Plumas (Paisagem do Capibaribe) de João Cabral de Melo Neto:
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa
de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão
Aquele rio
era
como um cão sem plumas.
nada
sabia da chuva azul,
da
fonte cor de rosa,
da
água do copo de água,
da
água de cântaro
dos
peixes de água,
da
brisa na água
[...]
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes
jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
abre-se numa flora
suja e mais
mendiga
como são os mendigos negros.
abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro
[...]
(MELO NETO, 1994, p.105-106)
Cabral, como assinala Secchin
(1985, p.77), vai gradualmente combatendo o caráter impositivo da metáfora em
um processo contínuo de desconstelização da palavra, propõe a imagem do cão
como rio, depois atribui ao cão e ao rio o que é próprio de um pano sujo e do
pássaro: “plumas”. A ideia de temporalidade já se manifesta no elemento “rio”
que se muta e simbiotiza-se, por alusão, com os elementos da paisagem por onde
passa. A fanopeia é evidenciada na gradação de cores do poema: azul, cor de
rosa e negro. As cores suaves, azul-rosa, são signos de uma amenidade que o rio
Capibaribe não conhece. Domina o grito social da paisagem de um homem-anfíbio
que vive na miséria. A cor que evidencia esse elemento é o negro, esta assinala
a vida de lama do homem na lama. O rio-ser-paisagem instaura o sublime
negativo.
O Cão Sem Plumas assinala o caráter impermanente e mutável do
tempo, do sentido das palavras e de todas as coisas, o “rio” não é o solista
dessa música das palavras, mas se funde com o ser, com elementos vegetais,
minerais e da cultura, antes aparece como um substantivo-caleidoscópico que se
repete dando ritmo, sonoridade, instaurando um poema-jazz, onde tudo está em
tudo. Essa repetição também assinala o
poeta não só como um ser engajado, mas como trabalhador das palavras.
Podemos dizer, ao modo de Haroldo de Campos, que Cabral é um geômetra engajado.
Contemplemos Mondrian:
(Fig.2. Mondrian, Broadway
Boogie-Woogie)[6]
Segundo Meyer Shapiro (2001,
p.73-84), Mondrian, na tela em questão, caminha em direção à nova tendência
voltada para a simetria, clareza e a legibilidade de uma arte que se
materializa no questionamento e recombinação da sua própria matéria: cores
primárias - branco, azul, vermelho e amarelo - linhas verticais e horizontais,
enfim, ao abstrato, à “pintura pura”, ao neoplasticismo. A relação dessa tela com o abstrato e com a música é evidente, as
unidades, verticais e horizontais, de cada conjunto de cores foram
meticulosamente recombinadas e embaralhadas, ao modo da palavra “rio” no Cão Sem Plumas de João Cabral de Melo Neto,
permanecem o geometrismo das figuras oblongas e quadradas mas sempre caleidoscopicamente
recombinadas de modo a instaurar, simultaneamente, ordem e movimento. Vale
ressaltar que o uso dos arranjos de cores primárias, na sua fase
neoplasticista, estabelece ainda uma ligação com a sua fase neo-impressionista.
Ressalto que ao criar suas telas de modo abstrato, Mondrian, como Cabral, não
abdica do seu grito social, pois jamais recusa a realidade mas a aparência da
realidade. Desse modo, exorta seu espectador a olhar a vida e a tela
criticamente, mais uma vez trata-se de um geometrismo engajado
O título da tela, Broadway Boogie-Woogie, já insinua um diálogo com a música e a dança,
enfim com as categorias do movimento e da temporalidade. Como assinala Meyer
Shapiro “[...] mesmo sem sabê-lo, provavelmente pensaríamos em música ao olhar
esta tela maravilhosamente viva, colorida e repleta de jazz.” (SHAPIRO, 2001,
p.79) Não esqueçamos também que a poesia é a dança das palavras, expressão do
pensamento por imagem-som.
Conclusão
Como atestam os teóricos da
literatura, à época do seu surgimento, no século XIX, a literatura comparada
que era concebida como subsidiária da historiografia literária punha em relação
apenas duas literaturas diferentes e preocupava-se, sobretudo, com a migração
de um elemento literário de um campo a outro, ou seja, com as influências que
exercia uma literatura nacional sobre outra. O comparatismo literário
mantinha-se, desta forma, sob uma forte base de valor axiológico e resultava em
um dado ecumênico falho. Visto que, como assinalou P. Brunel (1990, p.2), Pichois
e Rosseau, “a reivindicação nacionalista é condenável pois sendo política, é
frequentemente acompanhada de pretensões a superioridades étnicas.” De início o
comparatista prestou-se a julgar a originalidade de cada literatura.
No século XX, o conceito de
originalidade foi intensamente refutado por teóricos como Tinianov, Mikhail
Bakhtin, Julia Kristeva, entre outros, sendo substituído pela noção de
intertextualidade. Sabendo-se, hoje, que a literatura nasce da literatura e que
esta trata-se de um único palimpsesto
raspado e reescrito sem cessar ao
longo dos tempos, a literatura comparada ampliou seu método de abordagem e
comprova que a obra literária produz-se em um constante diálogo de textos, por
retomadas e trocas. Deste modo, supera a função, a priori, niveladora e
internacionalista, convertendo-se em uma disciplina que põe em relação
diferentes áreas das ciências e das artes, expandindo-se no vasto domínio das
relações intersemióticas. Como chama-nos a atenção Jean Molino, Maingueneau,
Boullart, entre outros teóricos que citamos, temos que alargar o conceito de
texto, para além de suas propriedades puramente linguísticas, sistematizá-lo
enquanto fenômeno traslingüístico, se pretendemos realizar uma exegese eficaz
da relação entre as artes.
A interdisciplinaridade, no que
se reporta ao comparatismo, não é novidade no campo das relações
interartísticas – se lembrarmos o já citado estudo de G. E. Lessing com o seu Laokoon, ou os Limites da pintura e da poesia (1766) já tão distante de nós
– mas as relações mútuas entre as artes têm sofrido muitas restrições. Há ainda
resistências em admitir-se que a comparação dá-se, também, no ultrapassar as
similaridades, que o comparatismo pode operar-se pelo confronto de elementos,
por vezes mesmo, díspares. Tais questões não estão suficientemente avançadas no
estado atual dos estudos em pauta e inúmeras pesquisas ainda estão por fazer.
O estudo da literatura comparada
alcança, atualmente, o terreno das artes que constituem, por si, partes de uma
totalidade: a Estética. O comparatista sem deixar de ter a literatura como
principal objeto de investigação, deve interrogá-la, entendendo-a não como um
sistema fechado em si mesmo, mas na sua implicação com outros códigos, sejam
eles picturais, musicais, cinematográficos etc.
No estudo da representação
literária calcado na abordagem intersemiótica – como o que empreendemos através
das poesias e telas abstratas que estudamos – a pesquisa é interessante se
banir e transcender, como nos disse Souriau, as metáforas imprecisas que são
evocadas ao se transpor arbitrariamente para uma arte a linguagem da outra. É
preciso estarmos atentos ao fato de que pode haver similaridade entre a
tradução de uma idéia artística em literatura, pintura, música, cinema, etc,
mas cada linguagem traz consigo recursos peculiares e trata o assunto de modo
específico. As várias artes possuem cada qual seu código artístico, sua
evolução individual, de ritmo diferente. Daí a riqueza da comparação entre
elas. Temos que ser rigorosos metodologicamente, se objetivamos consistência em
um campo que, a princípio, parece ser vago e de difícil acesso.
Com base nas análises que
fizemos, inferimos que há uma conjunção retórica entre a poesia e a pintura
abstrata. Ambas se valem da imagem para instaurar a espacialidade. Afirmamos
ainda que o texto poético, através da sequencialidade e da recordação lírica, dialoga com a categoria temporal. A pintura
abstrata instaura o tempo por meio do movimento das formas e cores. Fica
evidente que as artes em questão, ao agenciarem a temporalidade, assumem um
parentesco também com a música. Enfim, poesia é sobretudo imagem-som e pintura
abstrata imagem-movimento, ambas música
das cores.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Guilherme de. Melhores poemas. São Paulo: Global,
2004.
BARBOSA, João A. Prefácio. In: GONÇALVES,
Aguinaldo. Laokoon Revisitado. São
Paulo: Edusp, 1994.
BAUMGARTEN, A. G. Estética.
A Lógica da Arte e do Poema. Petrópolis :Vozes,
1993.
BOULART, Karel.
Littérature et Autres Arts. In: DELCROIX, M. et
HALLYN, F.(orgs.) Introduction Aux
Études Littéraires. Paris: Gembloux, 1987.
BRUNEL, P.; PICHOIS, C.; ROUSSEAU, A. M. O Que
é Literatura Comparada? São Paulo: Perspectiva, 1990.
DIDEROT. In: ASSEZAT, J et TOURNEUX, M. Ouvres Complèts de Diderot. Paris: Garnier, 1875.
FREY, Northop. Crítica Ética: Teorias do Símbolo. In: Anatomia da Crítica. São Paulo: Cultrix,
1993.
GONÇALVES,
Aguinaldo. Transição e Permanência. Miró/João
Cabral: Da tela ao texto. São Paulo:
Iluminuras, 1989.
____________________. Laokoon Revisitado. Relações Homológicas Entre imagem e Texto. São
Paulo : Edusp, 1994.
HAGSTRUM, Jean H. The Sister Arts:
The Tradicion of Picturalism and english Poetry from Dryden to Gray. University of Chicago Press, 1958.
HORÁCIO. Arte Poética. In: Crítica e Teoria Literária na Antiguidade. Rio
de Janeiro:
Ediouro, 1989. p.61-77.
LEITE, Walda M. N.S.M.S. O Estético e o
Semiótico num Código Pictórico. In:
Comunicação
em Análise. Teresina: Comepi, 1985. p.25-32.
LESSING. Laocoonte. Ou Sobre As Fronteiras da Pintura e da Poesia. São Paulo: Iluminuras,
1998.
LOTMAN, Iuri. M. La Semiosfera de la Cultura y del Texto. Desidério Navarro (org).
Madrid: Cátedra,
1996.
MACHADO, Irene. Escola de Semiótica. A Experiência de Tártu-Moscou Para o Estudo da
Cultura.
São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
MAINGUENEAU, Dominique. Genêse
du Discours. Bruxelles:
Mardaga, 1984.
MELO NETO, João Cabral de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994.
MILNER, John. Mondrian. New York : Phaidon, 2005.
MOLINO,
Jean. Interpréter. In: REISCHLER, C. (dir.) L’Interprétation
Des Textes. Paris:
Minuit,
1989. p.25-40.
PLAZA, Julio. A Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987.
PRAZ, M. Literatura
e Artes Plásticas. São Paulo: Cultrix, 1982.
SECCHIN, Antonio Carlos. João
Cabral: A Poesia do Menos. São Paulo, Duas
Cidades, 1985.
SCHAPIRO, Meyer. Mondrian. A Dimensão Humana da Pintura Abstrata. São Paulo:Cosac
& Naif, 2001.
SOURIAU, Étienne. A Correspondência das Artes. Elementos de Estética Comparada. São
Paulo: Cultrix, 1983.
STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1975.
UNGARETTI, Giuseppe. A Alegria. Edição bilíngue, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 2003.
WIND, Edgar. Pagan Misteries in the Renaissance. Londres: Faber and Faber,
1958.
[1] Universo (Universidade Salgado de Oliveira).
Gestora da Pós-graduação em Literatura Brasileira e Arte. Recife, PE, Brasil.CEP: 51150-001.
[2] DIDEROT apud ASSEZAT, J et TOURNEUX, M
(1875). Ouvres Complèts de Diderot. Paris, Garnier.
[3] HORÁCIO (1989). “Arte Poética”. In: Crítica e Teoria Literária
na Antiguidade. Rio de Janeiro, Ediouro, p.73, tradução de David Jardim
Júnior: Um poema é como um quadro: quanto mais perto estiverdes dele, mais vos
impressionará, mas deveis ficar a uma boa distância; esse precisa de um canto
bastante escuro, mas aquele necessita de luz plena, e resistirá ao cuidado
exame do crítico de arte; esse só vos agradará a primeira vez em que for visto, mas aquele vos deleitará tantas
vezes quanto seja olhado.
[4] Texto original. ROSE IN FIAME : "Su un oceano/ Dis scampanelli/
Repetina/ Un lattra matina"
[5] 1915,óleo sobre tela, pode ser visto em Munique no Staatsgalerie moderner
Kunts.
[6] Mondrian: Broadway Boogie-Woogie, 1942-43.
Coleção, TheMuseum of Modern Art, Nova York .
Doação anônima.