terça-feira, abril 09, 2013

Joaquim Cardozo - A Poética dos Ventos e a Lírica Moderna


Manoela Afonso


                              
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Resumo

Neste ensaio, faço um breve comentário sobre a obra do poeta pernambucano Joaquim Cardozo. Procuro mostrar, através de alguns poemas, Sobretudo o poema Congresso dos Ventos, que  a obra de Cardozo cada vez mais se afasta do regionalismo telúrico, alcançando uma poética  universal,  e  da poesia tradicional instaurando  uma lírica  moderna.

 Ah! pernambucanos! Tenho por eles uma admiração estupefata. Dessa província do Nordeste nos vem a poesia menos nordestina possível! Como a de João Cabral, que ordena seus jogos sábios numa atmosfera isenta de qualquer localismo...Os mesmos Bandeira e Joaquim Cardozo, que por vezes se detém a cantar amorosamente o Recife, já superam nesse canto a simples visão imediata. A terra natal fica sendo ponto de partida para uma viagem aos países da geografia interior. Assim são os pernambucanos. (Carlos Drummond de Andrade).
 
A poesia de Cardozo, apesar do seu efeito encantatório imediato junto ao leitor,  é uma poesia complexa. O poeta e crítico César Leal (Leal, 1996, p.6) referenda que  o livro Poemas publicado em 1947, assegurou-lhe um lugar na primeira linha  entre os poetas do Modernismo brasileiro. O espaço urbano na vida e na poesia de Joaquim Cardozo convive com uma aspiração pela Natura e pelos elementos cósmicos. Poesias como Imagens do Nordeste, Recordações de Tramataia, Ventos, Puidos Ventos, Figuras do Vento, Cajueiros de Setembro, A Várzea tem Cajazeiras  e Congresso dos Ventos  contém imagens que personificam a natureza. Os trabalhos de levantamento topográfico que fizera nos arredores do Recife, na época repleto de sítios muito arborizados, e na Várzea do Capibaribe marcaram sua poesia. Mas, a obra de Cardozo  parece dizer que o poeta que canta a sua cidade também canta o mundo. O poeta, como lembra Ezra Pound, é a antena da raça. Em Congresso dos Ventos, Os Ventos simbolizam a humanidade, trata-se de um entrecruzamento de vozes, traduzem o diálogo entre os homens de modo universal. Partindo da várzea do Capibaribe o poeta alça seu vôo cósmico convocando os ventos do mundo: Harmatã da Costa Guiné, Cansim representante da margem do Nilo, Garbino vindo das praias catalãs, os Alísios do Equador, o Terral e seu sopro lírico, entre tantos outros ventos.
Joaquim Cardozo recorre ao processo de personificação, onde os elementos da Natura e do cosmos assumem a função de dramatis personae, o Eu Lírico, afasta-se verbalmente, assume o olhar de quem observa, dilui-se na materialidade da linguagem. Assume o distanciamento da terceira pessoa. Quem age e fala na poesia são os ventos:   

Na várzea extensa do Capibaribe, em pleno mês de agosto/Reuniram-se em congresso todos os ventos do mundo. (...)”

(Cardozo,1996,p.21)
 
Todas as ações humanas são atribuídas aos ventos, tais como respirar falar, dançar, contar histórias de feitos guerreiros. Mas um vento se destaca por seu caráter sereno, nostálgico  e  lamentoso , o Vento do Nordeste:  

- Eu que, há trezentos anos, desembarquei das velas do [almirante Lonq/ Na praia de Pau Amarelo,/ Que tremulei nas flâmulas e nas bandeiras das naus de[ D. Antônio de Oquendo/ Aqui estou, nesta várzea, reduzido a professor de meninos:/ Hoje vivo a empinar papagaios...”

(Cardozo,1996,p.21) 
 
A poesia de Cardozo aqui se afasta do “eu pessoal” tão caro à poética dos românticos. Mas, não abdica totalmente do elemento humano. Pois a razão de existir do Vento são os meninos. É muito curioso o processo com o qual vai cosendo seu texto, os objetos, como o papagaio e as agulhas, elementos, como a areia, e as ações, são recursos utilizados para dar  concretude ao vento:  

“Mistral com seus cabelos de agulha, e os seus frios de dedos finos/ Simum com arrepiadas, severas e longas barbas de areia quente.”

(Cardozo,1996,p.21)
 
O vento também representa aqui a união do plano celeste com o terrestre, daí as barbas de areia de Simum, assim como Barinez respira doçura de rios azuis e Cansim que envolve altas nuvens de areia. Os ventos encerram seu Congresso com danças de roda, músicas e cantos de toda parte do mundo, de mares tempestuosos, capoeiras,  redemoinhos, parafusos, piões e rodopios. As ações concretizam o vento. Parafraseando Carpeaux, quando diz que a dança é música visível, digo que  a dança é o vento visível. O elemento popular merece destaque, traduz  o  gosto pelo folclore presente de maneira marcante  no teatro cardoziano.
Do ponto de vista dos recursos expressivos, o poema demonstra que Joaquim Cardozo possui um perfeito domínio da camada imagética e sonora da linguagem. Não se pode esquecer que toda grande poesia deve articular bem a imagem-som:  

 O último que se pôs a caminho foi o vento Aracati:/  - Cortou uns talos de chuva/ Com eles fez uma flauta/ E se foi, tocando e dançando/ E se foi, pela estrada de Goiana.”

(Cardozo,1996,p.21)

  
A  musicalidade dos versos foi obtida pela  repetição aliterante do t e do f. As palavras flauta e Goiana são rimas assonantes, a anáfora também aparece como recurso sonoro: E se foi.../ E se foi... . A imagem  na poesia alcança efeito sinestésico, pois a dimensão tátil da chuva é traduzida numa sensação auditiva: os talos da chuva são a flauta e a canção do vento. Um outro momento de grande labor de linguagem e efeito encantatório está na  gradação imagética: Onde o grande céu se encurva sobre verdes e verdes. O poeta  realiza  uma perfeita cromossonia (Sérgio Roclaw Basbaum) , enfatiza a um só tempo a sonoridade e a plasticidade da poesia. Ao repetir verdes e verdes, além da musicalidade, sugere a  imagem do mar e das árvores.
Em sua aspiração cósmica, Cardozo usa o vento como elemento comum entre povos distintos e união entre os homens da terra. Somos enfim o ar que respiramos. O Vento é a nossa própria existência. O sopro inicial é o verbo, somos nós. Anaxímenes, filosófo pré-socrático, defendia que o universo resultava das mutações do pneuma áiperon (ar infinito), “como nossa alma que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim, também todo o cosmos sopro e ar o mantém.” (apud, Souza,1996, P.57) O vento são todos os ventos, dizia também Victor Hugo.  

Segundo uma definição colhida da poesia romântica e generalizada muito sem razão, a lírica é tida muitas vezes , como a linguagem do estado de ânimo, da alma pessoal. Em sua obra Estrutura da Lírica Moderna,  Diz Hugo Friedrich:  

o conceito de estado de ânimo indica distensão mediante o recolhimento, em um espaço anímico, que mesmo o homem mais solitário compartilha com todos aqueles que conseguem sentir. É justamente essa intimidade comunicativa que a poesia moderna evita. Ela prescinde do humano no sentido tradicional do termo, da experiência vivida, do sentimento e, muitas vezes do eu pessoal do artista. Este não mais participa em sua criação de modo particular, porém como inteligência que poetiza, como operador da língua, como artista que experimenta os atos de transformação de sua fantasia imperiosa ou de seu modo irreal de ver num assunto qualquer, pobre de significado em si mesmo. Isto não exclui que tal poesia nasça da magia da alma e a desperte.”(Friedrich, 1991, p.17)
 
A lirica Moderna trata-se, como mostra Friedrich, de algo diferente de estado de ânimo, embora sem abdicar do lirismo. Trata-se de uma polifonia, a voz poética não mais quer participar de uma subjetividade solipsista, egocêntrica, individual, multiplica as vozes para melhor se sentir. Ortega y Gasset (1925),  ao descrever este fenômeno, assinala o que chama de desumanização da arte.
Creio que o projeto poético de Joaquim Cardozo, coincide com o dos poetas que ,segundo Friedrich, fundam a lírica moderna. Entre eles estão Baudelaire, Rimbaud,  Garcia Lorca, Francis  Ponge,  Montale. O que marca a evolução da obra de Cardozo  é cada vez mais o afastamento do confessionalismo romântico, do puro regionalismo provinciano. A voz poética cardoziana cada vez mais se coletiviza nos seres e nas coisas que observa. O grito de sua poesia é dado pelos elementos da natureza, pelos objetos que alegorizam o ser. Eis o  poema As Alvarenga, do seu primeiro livro:
 

  As Alvarengas! / Ei-las que vão e vêm; outras paradas, / imóveis. O ar silêncio. Azul céu, suavemente.(...) E seguindo-as também em curvas n’água propagadas, / A dor da Terra, o clamor das raízes.

(Cardozo,1996,p.21)
 

É um poema que realiza uma aspiração cósmica, mas também denuncia a dominação da cidade sobre o campo. A lei dos homens impondo à natureza indefesa a destruição. Aqui o homem é o elemento nocivo, e a terra  lança o seu grito.
Mesmo em um poema como Imagens do Nordeste , também do primeiro livro, que  foi construído na primeira pessoa e de tema regional, o poeta mostra-se já como um operador da língua, como um esgrimista da linguagem:

  A minha casa amarela/ Tinha seis janelas verdes/ do lado do sol nascente;/ Janelas sobre a esperança/ Paisagem, profundamente”.

(Cardozo,1996,p.21)
 
O jogo cromático é solene pela inventividade. As seis janelas verdes não se restringem a um elemento concreto, aqui a cor verde é veículo do  abstrato, indicializa uma idéia: a esperança. O poeta, mais uma vez contrariando os padrões estéticos do romantismo, abdica totalmente dos adjetivos e nos surpreende. Ao invés de adjetivar a palavra Paisagem, que seria o comum, ele faz uso do advérbio: Paisagem, profundamente. Este mesmo recurso é empregado no poema já citado As Alvarengas: O ar silêncio. Azul céu, suavemente. O adjetivo, nesta passagem, é descartado duplamente, o que qualifica o ar é um outro substantivo: ar silêncio.  Mas, como nos lembra Horácio  em sua Arte Poética, ou Epistula ad Pisones: “Segui a estrada batida ou inventai algo que tenha consistência em si mesmo, (Horácio, 1989, p. 65) é o que nos demonstra Cardozo. Do contrário, diz Horácio, a montanha entrará em trabalho de parto e há de parir um camundongo. (Horácio,1989, p.66)
Trivium é  considerado por césar Leal como uma das  três ou quatro expressões máximas da poesia brasileira do século XX.. Neste livro Cardozo leva a termo  o mesmo princípio de aspiração cósmica e  unificação entre as linguagens observados em Congresso dos Ventos. Trivium significa  o ponto de interseção de três caminhos, o ponto de encontro onde as coisas ou seres falam a mesma linguagem. Na Idade Média significava a união entre a Retórica, a Gramática e a Lógica. Neste livro Cardozo consolida sua lírica moderna. A voz poética cada vez mais distancia-se do humano e aproxima-se dos elementos cósmicos, das coisas,  fala através deles, como em Prelúdio e Elegia de Uma Despedida:

“No seio desta noite ouvi um choro prolongado. Pareceu-me a princípio que era o vento/ Agitando as árvores do jardim,/ Ou que eram vozes distantes, em serenata;/ /Mas um pranto, um pranto tão sentido,/ Tão perfeito e derramado/ Como se descesse das estrelas/ Como se viesse das montanhas/ Como se subisse da terra fria ou da noite das águas. Mas,  porque choravam?”

(Cardozo,1996,p.21)
 
A peculiaridade de Joaquim Cardozo está no fato de que o poeta distancia-se do elemento humano sem nunca abdicar dele. Procura sempre intersecionar o humano com a natureza e as coisas, ainda que o poema seja narrado na terceira pessoa:  

 Visão do último trem subindo ao céu/ tocando um sino de despedidas/ -Saindo vai da última estação-/ Através da noite vai...da noite iluminada/ Pela luz do casario; vai, do povoado,/ Passando ao longo dos quintais./ Pelas janelas do trem os passageiros/ Espiam os afazeres das pessoas.

(Cardozo,1996,p.21)
 
No Último Trem Subindo ao Céu, a voz poética  adota a visão de um trem: O trem se desliga da vida. Mas dentro dele  há passageiros, há homens que vêem a vida passar também sobre os trilhos. A singularidade de Joaquim Cardozo consiste no fato do elemento humano, do homem contemplar sua própria desumanização, o humano sempre está aquém da natureza e das coisas porque busca entender-se  nelas ou através delas, as ações e o sentir se concentram nos elementos da natureza, nos objetos. O universo, as coisas e a própria linguagem é o semem do entendimento do humano. É por isso que em Trivium a voz poética transcende a palavra enquanto fato lingüístico e busca também expressar-se através de desenhos e números. Enfim Cardozo, ao modo de Pitágoras, parece entender que o mundo é uma lira de no mínimo sete cordas.
Em Trivium, Joaquim Cardozo convida o leitor a beber o seu suor, como Baudelaire. Constrói seus poemas de modo a evitar a leitura fácil, a mera experiência do “compreensível”. Convida-nos a uma viagem além do ar, rumo ao não do espaço e do tempo:  

É preciso partir enquanto é noite,/ Enquanto é aspiração do absoluto./ É preciso voar no vórtice das lendas, das histórias antigas./ Viajar, circular, além das águas, além do ar./ Do ar- plâncton do espaço, alimento das asas./ - casulo da luz – crisálida.

          (Cardozo,1996,p.21)
 
Eis que findo a leitura deste poeta que, como o bailarino, deverá ter quebrado os ossos em segredo antes de se mostrar em público. Este exercício é o que falta a muitos que hoje se dizem poeta. Com Cardozo sabemos que poesia é antes de tudo labor com as palavras em busca do belo e da revelação do ser-linguagem.