Manoela Afonso
Resumo
Neste
ensaio, faço um breve comentário sobre a obra do poeta pernambucano Joaquim
Cardozo. Procuro mostrar, através de alguns poemas, Sobretudo o poema Congresso dos Ventos, que a obra de Cardozo cada vez mais se afasta do
regionalismo telúrico, alcançando uma poética
universal, e da poesia tradicional instaurando uma lírica
moderna.
A poesia
de Cardozo, apesar do seu efeito encantatório imediato junto ao leitor, é uma poesia complexa. O poeta e crítico
César Leal (Leal, 1996, p.6) referenda que
o livro Poemas publicado em
1947, assegurou-lhe um lugar na primeira linha
entre os poetas do Modernismo brasileiro. O
espaço urbano na vida e na poesia de Joaquim Cardozo convive com uma aspiração
pela Natura e pelos elementos cósmicos. Poesias como Imagens do Nordeste, Recordações de Tramataia, Ventos, Puidos Ventos,
Figuras do Vento, Cajueiros de Setembro, A Várzea tem Cajazeiras e Congresso
dos Ventos contém imagens que
personificam a natureza. Os trabalhos de levantamento topográfico que fizera nos arredores do Recife, na época repleto de sítios
muito arborizados, e na Várzea do Capibaribe marcaram sua poesia. Mas, a obra de
Cardozo parece dizer que o poeta que
canta a sua cidade também canta o mundo. O poeta, como lembra Ezra Pound, é a
antena da raça. Em Congresso dos Ventos,
Os Ventos simbolizam a humanidade, trata-se de um entrecruzamento de vozes,
traduzem o diálogo entre os homens de modo universal. Partindo da várzea do Capibaribe o poeta alça seu vôo cósmico
convocando os ventos do mundo: Harmatã da Costa Guiné, Cansim representante da
margem do Nilo, Garbino vindo das praias catalãs, os Alísios do Equador, o
Terral e seu sopro lírico, entre tantos outros ventos.
Joaquim Cardozo recorre ao
processo de personificação, onde os elementos da Natura e do cosmos assumem a
função de dramatis personae, o Eu Lírico, afasta-se verbalmente, assume o olhar
de quem observa, dilui-se na materialidade da linguagem. Assume o
distanciamento da terceira pessoa. Quem age e fala na poesia são os
ventos:
“Na várzea extensa do Capibaribe, em pleno
mês de agosto/Reuniram-se em congresso todos os ventos do mundo. (...)”
(Cardozo,1996,p.21)
Todas as
ações humanas são atribuídas aos ventos, tais como respirar falar, dançar,
contar histórias de feitos guerreiros. Mas um vento se destaca por seu caráter
sereno, nostálgico e lamentoso , o Vento do Nordeste:
“ - Eu que, há trezentos anos, desembarquei
das velas do [almirante Lonq/ Na praia de Pau Amarelo,/ Que tremulei nas
flâmulas e nas bandeiras das naus de[ D. Antônio de Oquendo/ Aqui estou, nesta
várzea, reduzido a professor de meninos:/ Hoje vivo a empinar papagaios...”
(Cardozo,1996,p.21)
A poesia
de Cardozo aqui se afasta do “eu pessoal” tão caro à poética dos românticos. Mas, não abdica totalmente do elemento
humano. Pois a razão de existir do Vento são os meninos. É muito curioso o
processo com o qual vai cosendo seu texto, os objetos, como o papagaio e as
agulhas, elementos, como a areia, e as ações, são recursos utilizados para
dar concretude ao vento:
“Mistral com seus cabelos de agulha, e os seus frios
de dedos finos/ Simum com arrepiadas, severas e longas barbas de areia quente.”
(Cardozo,1996,p.21)
O vento
também representa aqui a união do plano celeste com o terrestre, daí as barbas
de areia de Simum, assim como Barinez respira
doçura de rios azuis e Cansim que envolve
altas nuvens de areia. Os ventos encerram seu Congresso com danças de roda,
músicas e cantos de toda parte do mundo, de mares tempestuosos, capoeiras, redemoinhos, parafusos, piões e rodopios. As
ações concretizam o vento. Parafraseando Carpeaux, quando diz que a dança é
música visível, digo que a dança é o
vento visível. O elemento popular merece destaque, traduz o
gosto pelo folclore presente de maneira marcante no teatro cardoziano.
Do ponto
de vista dos recursos expressivos, o poema demonstra que Joaquim Cardozo possui
um perfeito domínio da camada imagética e sonora da linguagem. Não se pode
esquecer que toda grande poesia deve articular bem a imagem-som:
“O
último que se pôs a caminho foi o vento Aracati:/ - Cortou uns talos de chuva/ Com eles fez uma
flauta/ E se foi, tocando e dançando/ E se foi, pela estrada de Goiana.”
(Cardozo,1996,p.21)
A
musicalidade dos versos foi obtida pela
repetição aliterante do t e do f. As palavras flauta e Goiana são rimas
assonantes, a anáfora também aparece como recurso sonoro: E se foi.../ E se foi... . A imagem
na poesia alcança efeito sinestésico, pois a dimensão tátil da chuva é
traduzida numa sensação auditiva: os talos da chuva são a flauta e a canção do
vento. Um outro momento de grande labor de linguagem e efeito encantatório está
na gradação imagética: Onde o grande céu se encurva sobre verdes e
verdes. O poeta realiza uma perfeita cromossonia (Sérgio Roclaw Basbaum) , enfatiza a um só tempo a
sonoridade e a plasticidade da poesia. Ao repetir verdes e verdes, além da musicalidade, sugere a imagem do mar e das árvores.
Em sua
aspiração cósmica, Cardozo usa o vento como elemento comum entre povos
distintos e união entre os homens da terra. Somos enfim o ar que respiramos. O
Vento é a nossa própria existência. O sopro inicial é o verbo, somos nós. Anaxímenes,
filosófo pré-socrático, defendia que o universo resultava das mutações do pneuma áiperon (ar infinito), “como nossa alma que é ar, soberanamente
nos mantém unidos, assim, também todo o cosmos sopro e ar o mantém.” (apud,
Souza,1996, P.57) O vento são todos os ventos, dizia também Victor Hugo.
Segundo
uma definição colhida da poesia romântica e generalizada muito sem razão, a
lírica é tida muitas vezes , como a linguagem do estado de ânimo, da alma
pessoal. Em sua obra Estrutura da Lírica
Moderna, Diz Hugo Friedrich:
“o conceito de estado de ânimo indica
distensão mediante o recolhimento, em um espaço anímico, que mesmo o homem mais
solitário compartilha com todos aqueles que conseguem sentir. É justamente essa
intimidade comunicativa que a poesia moderna evita. Ela prescinde do humano no
sentido tradicional do termo, da experiência vivida, do sentimento e, muitas
vezes do eu pessoal do artista. Este não mais participa em sua criação de modo
particular, porém como inteligência que poetiza, como operador da língua, como
artista que experimenta os atos de transformação de sua fantasia imperiosa ou
de seu modo irreal de ver num assunto qualquer, pobre de significado em si
mesmo. Isto não exclui que tal poesia nasça da magia da alma e a desperte.”(Friedrich,
1991, p.17)
A lirica
Moderna trata-se,
como mostra Friedrich, de algo diferente de estado de ânimo, embora sem abdicar
do lirismo. Trata-se de uma polifonia, a voz poética não mais quer participar
de uma subjetividade solipsista, egocêntrica, individual, multiplica as vozes
para melhor se sentir. Ortega y Gasset (1925),
ao descrever este fenômeno, assinala o que chama de desumanização da arte.
Creio que
o projeto poético de Joaquim Cardozo, coincide com o dos poetas que ,segundo
Friedrich, fundam a lírica moderna. Entre eles estão Baudelaire, Rimbaud, Garcia Lorca, Francis Ponge,
Montale. O que marca a evolução da obra de Cardozo é cada vez mais o afastamento do
confessionalismo romântico, do puro regionalismo provinciano. A voz poética cardoziana
cada vez mais se coletiviza nos seres e nas coisas que observa. O grito de sua
poesia é dado pelos elementos da natureza, pelos objetos que alegorizam o ser.
Eis o poema As Alvarenga, do seu primeiro livro:
“As
Alvarengas! / Ei-las que vão e vêm; outras paradas, / imóveis. O ar silêncio.
Azul céu, suavemente.(...) E seguindo-as também em curvas n’água propagadas, /
A dor da Terra, o clamor das raízes.”
(Cardozo,1996,p.21)
É um
poema que realiza uma aspiração cósmica, mas também denuncia a dominação da
cidade sobre o campo. A lei dos homens impondo à natureza indefesa a
destruição. Aqui o homem é o elemento nocivo, e a terra lança o seu grito.
Mesmo em um poema como Imagens do Nordeste , também do primeiro livro, que foi construído na primeira pessoa e de tema
regional, o poeta mostra-se já como um operador da língua, como um esgrimista
da linguagem:
“ A
minha casa amarela/ Tinha seis janelas verdes/ do lado do sol nascente;/
Janelas sobre a esperança/ Paisagem, profundamente”.
(Cardozo,1996,p.21)
O jogo cromático é solene pela
inventividade. As seis janelas verdes não se restringem a um elemento concreto,
aqui a cor verde é veículo do abstrato,
indicializa uma idéia: a esperança. O poeta, mais uma vez contrariando os
padrões estéticos do romantismo, abdica totalmente dos adjetivos e nos
surpreende. Ao invés de adjetivar a palavra Paisagem,
que seria o comum, ele faz uso do advérbio: Paisagem, profundamente. Este
mesmo recurso é empregado no poema já citado As Alvarengas: O ar silêncio.
Azul céu, suavemente. O
adjetivo, nesta passagem, é descartado duplamente, o que qualifica o ar é um
outro substantivo: ar silêncio. Mas,
como nos lembra Horácio em sua Arte Poética ,
ou Epistula ad Pisones: “Segui a
estrada batida ou inventai algo que tenha consistência em si mesmo, (Horácio,
1989, p. 65) é o que nos demonstra
Cardozo. Do contrário, diz Horácio, a
montanha entrará em trabalho de parto e há de parir um camundongo. (Horácio,1989,
p.66)
Trivium
é considerado por césar Leal como uma
das três ou quatro expressões máximas da
poesia brasileira do século XX.. Neste livro Cardozo leva a termo o mesmo princípio de aspiração cósmica e unificação entre as linguagens observados em
Congresso dos Ventos. Trivium significa o ponto de interseção de três caminhos, o
ponto de encontro onde as coisas ou seres falam a mesma linguagem. Na Idade
Média significava a união entre a Retórica, a Gramática e a Lógica. Neste livro
Cardozo consolida sua lírica moderna. A voz poética cada vez mais distancia-se
do humano e aproxima-se dos elementos cósmicos, das coisas, fala através deles, como em Prelúdio
e Elegia de Uma Despedida:
“No seio desta noite ouvi um choro prolongado.
Pareceu-me a princípio que era o vento/ Agitando as árvores do jardim,/ Ou que
eram vozes distantes, em serenata;/ /Mas um pranto, um pranto tão sentido,/ Tão
perfeito e derramado/ Como se descesse das estrelas/ Como se viesse das
montanhas/ Como se subisse da terra fria ou da noite das águas. Mas, porque choravam?”
(Cardozo,1996,p.21)
A
peculiaridade de Joaquim Cardozo está no fato de que o poeta distancia-se do
elemento humano sem nunca abdicar dele. Procura sempre intersecionar o humano
com a natureza e as coisas, ainda que o poema seja narrado na terceira pessoa:
“Visão
do último trem subindo ao céu/ tocando um sino de despedidas/ -Saindo vai da
última estação-/ Através da noite vai...da noite iluminada/ Pela luz do
casario; vai, do povoado,/ Passando ao longo dos quintais./ Pelas janelas do
trem os passageiros/ Espiam os afazeres das pessoas.”
(Cardozo,1996,p.21)
No Último
Trem Subindo ao Céu, a voz
poética adota a visão de um trem: O trem se desliga da vida. Mas dentro
dele há passageiros, há homens que vêem
a vida passar também sobre os trilhos. A
singularidade de Joaquim Cardozo consiste no fato do elemento humano, do homem
contemplar sua própria desumanização, o humano sempre está aquém da natureza e
das coisas porque busca entender-se
nelas ou através delas, as ações e o sentir se concentram nos elementos
da natureza, nos objetos. O universo, as coisas e a própria linguagem é o semem
do entendimento do humano. É por isso que em Trivium a voz poética transcende a palavra enquanto fato
lingüístico e busca também expressar-se através de desenhos e números. Enfim
Cardozo, ao modo de Pitágoras, parece entender que o mundo é uma lira de no
mínimo sete cordas.
Em Trivium, Joaquim Cardozo convida o
leitor a beber o seu suor, como Baudelaire. Constrói seus poemas de modo a
evitar a leitura fácil, a mera experiência do “compreensível”. Convida-nos a
uma viagem além do ar, rumo ao não
do espaço e do tempo:
É preciso partir enquanto é noite,/ Enquanto é
aspiração do absoluto./ É preciso voar no vórtice das lendas, das histórias
antigas./ Viajar, circular, além das águas, além do ar./ Do ar- plâncton do espaço, alimento das asas./ - casulo da luz –
crisálida.
(Cardozo,1996,p.21)
Eis que
findo a leitura deste poeta que, como o bailarino, deverá ter quebrado os ossos
em segredo antes de se mostrar em público. Este exercício é o que falta a muitos
que hoje se dizem poeta. Com Cardozo sabemos que poesia é antes de tudo labor
com as palavras em busca do belo e da revelação do ser-linguagem.