quarta-feira, julho 04, 2012

Dois Poemas de Almada Negreiros



















A  TAÇA DE CHÁ
O luar desmaiava mais ainda uma máscara caída nas esteiras bordadas. E os bambus ao vento e os crisântemos nos jardins e as garças no tanque, gemiam com ele a adivinharem-lhe o fim. Em roda tombavam-se adormecidos os ídolos coloridos e os dragões alados. E a gueixa, porcelana transparente como a casca de um ovo da Íbis, enrodilhou-se num labirinto que nem os dragões dos deuses em dias de lágrimas. E os seus olhos rasgados, pérolas de Nanguim a desmaiar-se em água, confundiam-se cintilantes no luzidio das porcelanas.

Ele, num gesto último, fechou-lhe os lábios co'as pontas dos dedos, e disse a finar-se: — Chorar não é remédio; só te peço que não me atraiçoes enquanto o meu corpo for quente. Deixou a cabeça nas esteiras e ficou. E Ela, num grito de garça, ergueu alto os braços a pedir o Céu para Ele, e a saltitar foi pelos jardins a sacudir as mãos, que todos os que passavam olharam para Ela.

Pela manhã vinham os vizinhos em bicos dos pés espreitar por entre os bambus, e todos viram acocorada a gueixa abanando o morto com um leque de marfim.

A estampa do pires é igual.

 
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TREVAS


De dia não se via nada, mas pla tardinha já se apercebia gente que vinha de punhais na mão, devagar, silenciosamente, nascendo dos pinheiros e morrendo neles. E os punhais não brilhavam: eram luzes distantes, eram guias de lençóis de linho escorridos de ombros franzinos. E a brisa que vinha dava gestos de asas vencidas aos lençóis de linho, asas brancas de garças caídas por faunos caçadores. E o vento segredava por entre os pinheiros os medos que nasciam.

E vinha vindo a noite por entre os pinheiros, e vinha descalça com pés de surdina por mor do barulho, de braços estendidos pra não topar com os troncos; e vinha vindo a noite ceguinha como a lanterna que Ihe pendia da cinta. E vinha a sonhar. As sombras ao vê-la esconderam os punhais nos peitos vazios.

A Lua e uma laranja de oiro num prato azul do Egipto com pérolas descriminadas. E as silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados na brisa eram um bailado de estátua de sonho em vitrais azuis. Mãos ladras de sonhar levaram a laranja, e o prato enlutou-se.

Por entre os pinheiros esgalgados, por entre os pinheiros entristecidos, havia gemidos da brisa dos túmulos, havia surdinas de gritos distantes — e distantes os ouviam os pinheiros esgalgados, os pinheiros gigantes.

A brisa fez-se gritos de pavões perseguidos. E as sombras em danças macabras fugiam fumo dos pinheirais plo meu respirar.

Escondidas todas por detrás de todos os pinheiros, chocam-se nos ares os punhais acesos. Faz-se a fogueira e as bruxas em roda rezam a gritar ladainhas da Morte. Vêm mais bruxas, trazem alfanges e um caixão. Doem-me os cabelos, fecham-se-me os olhos e quatro anjos levam-me a alma. Mas a cigarra em algazarra de além do monte vem dizer-me que tudo dorme em silêncio na escuridão.

Veio a manhã e foi como de dia: não se via nada.
'Frisos'. Revista Orfeu n.° 1
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José Sobral de Almada Negreiros (Trindade, 7 de Abril de 1893 — Lisboa, 15 de Junho de 1970) foi um artista multidisciplinar, pintor, escritor, poeta, ensaísta, dramaturgo e romancista português ligado ao grupo modernista. Foi um dos principais colaboradores da Revista Orpheu, bem como da revista Portugal Futurista. Em 1935, ano em que morreu Fernando Pessoa, lançou a sua própria revista, Sudoeste: cadernos de Almada Negreiros.