quinta-feira, novembro 10, 2011

Um Passeio no Bosque de Eco























Passear pelo bosque, a princípio, sempre foi algo prazenteiro, festivo para personagens de contos infantis e fábulas, embora todo grande arvoredo oculte suas “arvoreidades” e perigos. Umberto Eco em ‘Os Limites da Interpretação’, lançado pela Ed. Perspectiva, mais uma vez nos convida a passear pelo bosque, já trilhado pelos hermeneutas e por ele próprio em outros livros, em busca de uma via que nos conduza , pari passu, à sombra do compreender e explicar eficazes.
Os ensaios coligidos em ‘Os Limites da Interpretação’ foram escritos na metade dos anos oitenta, tratam do mesmo assunto embora apresentem pontos de vistas diferentes. A edição italiana, I Limite dell’Interpretazione, de novembro de 1990 que serve de texto-base à tradução em língua portuguesa, difere, em parte, da edição norte-americana (The Limits of Interpretation, Indiana University Press) publicada quase que contemporaneamente. Mas a diferença entre elas trata-se apenas de adequação cultural, o posicionamento de ambas é o mesmo.
A primeira localidade da hermenêutica (ciência da interpretação) é certamente a da linguagem e, sobretudo, da linguagem escrita. Coube a F. Scheimacher o esforço para extrair um problema geral da atividade de interpretação, cada vez mais aplicada a textos diferentes. O que havia antes dele, era de um lado uma filologia dos textos clássicos, a saber, os da antiguidade greco-latina e do outro uma exegese dos textos sagrados, o Antigo e Novo Testamentos. Umberto Eco já em 'Obra Aberta' (1962), assim como Barthes, Emílio Garroni e outros semioticistas, desregionalizou a Hermenêutica do campo específico dos textos verbais, tratando também a pintura, o cinema e a tv como estruturas narrativas.
A busca de uma economia da leitura constitui o tema pivô de ‘Os Limites da Interpretação’. Diz Eco: “À sombra de tradição diferente, gostaria igualmente de citar o meu Obra Aberta, a saber, um livro que – escrito entre 1958 e 1962 com instrumentos ainda inadequados – colocava na base do funcionamento mesmo da arte a relação com o intérprete, uma relação que a obra instituía autoritariamente como livre e imprevisível, com toda a força do oxímoro.” Nesta época falando em obra aberta, ele destacava o problema de determinar como a obra ao prever um sistema de expectativas psicológicas, culturais e históricas por parte do receptor procura instituir o que Joyce chamava em 'Finnegans Wake' de “Ideal Reader” (leitor ideal). Eco postulava, então, um leitor obrigado a sofrer – sempre em termos joyceanos – também de uma “insônia ideal”, visto que a estratégia textual estabelecida  o induzia a interrogar a obra ad infinitum. Mas é válido frisar, Eco insistia para que o leitor interrogasse a obra, e não as próprias pulsões pessoais, impondo uma dialética de fidelidade e liberdade ao ato interpretativo. O que é ótimo! Pois livra a interpretação de um mero agenciamento psicologizante, já que na arte e, patentemente, no texto literário o real faz-se real via linguagem.
Umberto Eco, agora, assume que os enunciados podem ter um “significado literal” sabendo ser esta questão controvertida. Defende que “dentro dos confins de uma língua determinada, existe um sentido literal das formas lexicais, que é o que vem arrolado em primeiro lugar no dicionário, ou então aquele que todo cidadão comum elegeria em primeiro lugar quando lhe fosse perguntado o que significa determinada palavra.” Convida-nos a uma economia da leitura e, principalmente, a “economizar em cima de Joyce”. Diz-nos que há leituras que 'Finnegans Wake' não permite. Cita-o como uma imagem satisfatória do universo da semiose ilimitada “exatamente por ser um texto que, per si, se impõe como texto”. Para Eco um texto aberto continua sendo um texto que pode suscitar uma infinidade de leituras sem , contudo, permitir uma leitura qualquer. Argumenta: “ No processo de semiose ilimitada é possível passarmos de um nó qualquer a outro nó, mas as passagens são controladas por regras de conexão que a nossa história cultural legitimou.” Devemos saber fazer uso do desconstrucionismo que propõe, de certo modo, uma cadeia ilimitada de sentidos. Para Eco, Derrida - teórico da desconstrução - é mais lúcido que o derridismo.
Passear nos bosques de Eco é integrar um piquenique com autores dos mais importantes ligados  às teorias da “Semiótica da Recepção”, da “Semiose Hermética” e ao “Trabalho de Interpretação”, acompanhados de leituras de Dante, Leopardi, Joyce e dos romances do próprio Eco.
Lichtenberg – a propósito de Böhme – diz que “um texto não passa de um piquenique para onde o autor leva apenas as palavras e os leitores o sentido.” Não esqueçamos o dizer de Austin: “com as palavras podem-se fazer coisas; e não uma coisa qualquer mas aquelas coisas que aquelas palavras estão aptas a fazer.” Longe de abrir bocejos, um piquenique no bosque de Eco obriga-nos a bosquejar (traçar, esboçar) nosso plano geral de leitura cientes de que, como receptores, somos também produtores e os instrumentos que temos à mão para executarmos nossa tarefa são as palavras. 'Os Limites da Interpretação' impele-nos, de fato, a estarmos insones, senão como leitores ideais, como leitores - ávidos à releitura. Sem dúvida é um texto que já nasceu clássico, ao lado de 'Interpretações e Ideologias' (1988) de Paul Ricouer (filósofo do sentido), constitui um marco para os estudos do ato interpretativo.

* Resenha publicada no Jornal do Commercio (PE), por ocasião do lançamento do livro no Brasil.