Passear pelo bosque, a princípio,
sempre foi algo prazenteiro, festivo para personagens de contos infantis e
fábulas, embora todo grande arvoredo oculte suas “arvoreidades” e perigos.
Umberto Eco em ‘Os Limites da
Interpretação’, lançado pela Ed. Perspectiva, mais uma vez nos convida a
passear pelo bosque, já trilhado pelos hermeneutas e por ele próprio em outros
livros, em busca de uma via que nos conduza , pari passu, à sombra do
compreender e explicar eficazes.
Os ensaios coligidos em ‘Os Limites da Interpretação’ foram
escritos na metade dos anos oitenta, tratam do mesmo assunto embora apresentem
pontos de vistas diferentes. A edição italiana, I Limite dell’Interpretazione,
de novembro de 1990 que serve de texto-base à tradução em língua portuguesa,
difere, em parte, da edição norte-americana (The Limits of Interpretation,
Indiana University Press) publicada quase que contemporaneamente. Mas a
diferença entre elas trata-se apenas de adequação cultural, o posicionamento de
ambas é o mesmo.
A primeira localidade da
hermenêutica (ciência da interpretação) é certamente a da linguagem e,
sobretudo, da linguagem escrita. Coube a F. Scheimacher o esforço para extrair
um problema geral da atividade de interpretação, cada vez mais aplicada a textos
diferentes. O que havia antes dele, era de um lado uma filologia dos textos
clássicos, a saber, os da antiguidade greco-latina e do outro uma exegese dos
textos sagrados, o Antigo e Novo Testamentos. Umberto Eco já em 'Obra Aberta'
(1962), assim como Barthes, Emílio Garroni e outros semioticistas,
desregionalizou a Hermenêutica do campo específico dos textos verbais, tratando
também a pintura, o cinema e a tv como estruturas narrativas.
A busca de uma economia da
leitura constitui o tema pivô de ‘Os
Limites da Interpretação’. Diz Eco: “À sombra de tradição diferente,
gostaria igualmente de citar o meu Obra Aberta, a saber, um livro que – escrito
entre 1958 e 1962 com instrumentos ainda inadequados – colocava na base do
funcionamento mesmo da arte a relação com o intérprete, uma relação que a obra
instituía autoritariamente como livre e imprevisível, com toda a força do oxímoro.” Nesta época falando em obra aberta, ele destacava o problema de determinar como
a obra ao prever um sistema de expectativas psicológicas, culturais e
históricas por parte do receptor procura instituir o que Joyce chamava em
'Finnegans Wake' de “Ideal Reader” (leitor ideal). Eco postulava, então, um
leitor obrigado a sofrer – sempre em termos joyceanos – também de uma “insônia
ideal”, visto que a estratégia textual estabelecida o induzia a interrogar a obra ad infinitum.
Mas é válido frisar, Eco insistia para que o leitor interrogasse a obra, e não
as próprias pulsões pessoais, impondo uma dialética de fidelidade e liberdade
ao ato interpretativo. O que é ótimo! Pois livra a interpretação de um mero
agenciamento psicologizante, já que na arte e, patentemente, no texto literário
o real faz-se real via linguagem.
Umberto Eco, agora, assume que os
enunciados podem ter um “significado literal” sabendo ser esta questão
controvertida. Defende que “dentro dos confins de uma língua determinada,
existe um sentido literal das formas lexicais, que é o que vem arrolado em
primeiro lugar no dicionário, ou então aquele que todo cidadão comum elegeria
em primeiro lugar quando lhe fosse perguntado o que significa determinada
palavra.” Convida-nos a uma economia da leitura e,
principalmente, a “economizar em cima de Joyce”. Diz-nos que há leituras que
'Finnegans Wake' não permite. Cita-o como uma imagem satisfatória do universo da
semiose ilimitada “exatamente por ser um texto que, per si, se impõe como
texto”. Para Eco um texto aberto continua sendo um texto que pode suscitar uma
infinidade de leituras sem , contudo, permitir uma leitura qualquer. Argumenta:
“ No processo de semiose ilimitada é possível passarmos de um nó qualquer a
outro nó, mas as passagens são controladas por regras de conexão que a nossa
história cultural legitimou.” Devemos saber fazer uso do desconstrucionismo
que propõe, de certo modo, uma cadeia ilimitada de sentidos. Para Eco, Derrida - teórico da desconstrução - é mais lúcido que o derridismo.
Passear nos bosques de Eco é
integrar um piquenique com autores dos mais importantes ligados às teorias da “Semiótica da Recepção”, da
“Semiose Hermética” e ao “Trabalho de Interpretação”, acompanhados de leituras
de Dante, Leopardi, Joyce e dos romances do próprio Eco.
Lichtenberg – a propósito de
Böhme – diz que “um texto não passa de um piquenique para onde o autor leva
apenas as palavras e os leitores o sentido.” Não esqueçamos o dizer de Austin:
“com as palavras podem-se fazer coisas; e não uma coisa qualquer mas aquelas
coisas que aquelas palavras estão aptas a fazer.” Longe de abrir bocejos, um
piquenique no bosque de Eco obriga-nos a bosquejar (traçar, esboçar) nosso
plano geral de leitura cientes de que, como receptores, somos também produtores
e os instrumentos que temos à mão para executarmos nossa tarefa são as
palavras. 'Os Limites da Interpretação' impele-nos, de fato, a estarmos insones,
senão como leitores ideais, como leitores - ávidos à releitura. Sem dúvida é um
texto que já nasceu clássico, ao lado de 'Interpretações e Ideologias' (1988) de
Paul Ricouer (filósofo do sentido), constitui um marco para os estudos do ato
interpretativo.