Uso palavras ao invés de dedos ou
é como se tivesse dedos na ponta das palavras, à la Roland Barthes. Para Sor Juana - no invólucro da carne
frágil - a linguagem foi, de fato, uma pele. Quem é esta mulher?
Pouco ou nada se sabe sobre Sor Juana (1648-1695) no Brasil. O único que deu
devida atenção a esta escritora foi Manuel Bandeira que a introduziu na sua
'Literatura Hispano-Americana' em 1949, quando o poeta era catedrático da
disciplina na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mas que bandeira é esta, que impudente na gávea tripudia? Octavio Paz diz que ela inaugura a posição do
poeta moderno frente ao cosmos, pois reflete especularmente sobre a linguagem,
atitude radicalizada mais tarde por
poetas como Mallarmé.
Lapso imperdoável da crítica
brasileira, ignorar uma das inteligências mais fecundas do nosso continente no
século XVII. Nascera em Nova Espanha (México atual). No período Barroco, quando
o grão da voz feminina não podia ser semeado na escrita, Sor Juana se consagra
como a grande primeira escritora da América Latina. Semen est verbum Dei ( A
semente é a palavra de Deus) professa em seu tempo o padre Antônio Vieira.
Cingida às limitações da época,
Sor Juana foi a mulher que refletiu e teve condições de optar sobre o seu
destino. Avessa à ideia do casamento, seu ingresso ao Convento das Jerônimas
foi o artifício, reiterado por uma assinatura com sangue de suas veias,
encontrado pela freira – sem dotes e sem títulos de nobreza – para se dedicar
exclusivamente ao afã da palavra, como assinala Jorge Schwartz (professor de
literatura hispano-americana da USP).
Sor Juana vai em busca do Logos
Spermátikos, do sêmen da palavra. A dedicação é plena, a entrega absoluta,
liquefeita em fidelidade. O amor pelo Logos (palavra, discurso) não se fraciona
em outros interesses. Ela não opta por ser freira, mas por não ser esposa,
mulher submissa e silenciada. Sor Juana fraciona a imagem de Deus, a sentença
de Vieira e professa veladamente: Semen est Verbum...(A semente é a
palavra).
Entre seis e sete anos, pede a
cumplicidade da mãe para vesti-la como menino e enviá-la à Universidade.
Descobre desde menina que, para viver sua paixão pelo logos, deve driblar
aqueles que tinham o poder e a chave do conhecimento: os homens...
Penetrar a biblioteca, decifrar e
dominar o mundo...Para Borges, em A Biblioteca de Babel, a palavra biblioteca é empregada para
denominar o Universo. A abadia é então a biblioteca, coragem de uma freira que
ousa corromper o poder milenar do homem: o conhecimento.
Lilith insubmissa a Adão, Pandora
punida por abrir sua caixa, Amazonas - como mostra Ésquilo - punidas por Zeus pela
recusa ao matrimônio e transgressão do movimento cósmico, assim foi Sor
Juana calada em seu tempo pelo bispo de Puebla: Manuel Fernández de Santa
Cruz. Calada para o outro e jamais para si mesma, confinada ao anonimato ela
escreve, imprime sangue eterno à sua canção que nos chega até hoje.
Sor Juana precede em quase três
séculos o que diz Virgínia Woolf: "É necessário ter quinhentas libras por ano
e um quarto com fechadura na porta se vocês quiserem escrever ficção ou
poesia...As quinhentas libras por ano representam o poder de contemplar, e a
fechadura na porta significa o poder de pensar por si mesmas."
Sor Juana como bem destacam as
estudiosas de sua poesia, Tereza Cristófani e Vera Mascarenhas, invadiu o
labirinto babélico da palavra, como um espelho borgeano, copiou a ficção das
coisas, pariu estrelas...Especulou-as em sua imagem triplicada em freira,
mulher, escritora. A mesma mulher que cifrou sua linguagem, levanta o véu das
palavras e convida o leitor à re-velação de si mesma, num lavartus prodeo, baile
de máscaras, fuga de sentido, coitus reservatus com a palavra, gozo com a linguagem:
Este, que vês, engano
colorido,
Que vai da arte ostentando tais primores,
Com falsos silogismos de suas
cores
É cauteloso engano de sentido;
Este, em que a lisonja tem
querido
Dos anos evitar todos os
horrores,
E vencendo do tempo os rigores
Triunfar da velhice e do
olvido,
É um falso artifício do
cuidado
É uma flor ao vento delicada,
É um resguardo inútil para o
fado:
É uma néscia diligência
errada,
É um afã caduco, e bem mirado,
É cadáver, é pó, é sombra, é
nada.
No poema tarja-se o jogo
especular, voyeur de si mesma, mirada reflexa e reflexiva, engano colorido,
silogismo de cores, a arte espreita a arte, a liguagem espreita a linguagem, a
linguagem é verbo, o verbo é o próprio ser. Sor Juana -
em sua logofania - passa do seu retrato para o espelho e
daí para o texto.
A poesia é um espelho que nunca
instaura em definitivo a imagem que se mira, mas é devir, corpo a tornar-se
concreto, formar-se, deformar-se conforme a variação de luz, o ângulo, as
sombras, as tintas, as cores e o enfoque de quem os imprime e olha.