Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vividos tão plenamente como aqueles que pensamos ter deixado sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido. Era como se tudo aquilo que para os outros os transformava em dias cheios, nós desprezássemos como um obstáculo vulgar a um prazer divino: o convite de um amigo para um jogo exatamente na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol que nos forçava a erguer os olhos da página ou mudar de lugar, a merenda que nos obrigavam a levar e deixávamos de lado intocada sobre o banco, enquanto nossa cabeça o sol empaledecia no céu azul; o jantar que nos fazia voltar para casa e em cujo fim não deixávamos de pensar para, logo em seguida, poder terminar o capítulo interrompido, tudo isso a leitura nos fazia perceber apenas como incoveniências, ela as gravava, contudo, em nós, como lembrança tão doce (muito mais preciosa, vendo agora à distância, do que o que líamos então com tanto amor) que se nos acontece ainda hoje folhearmos esses livros de outrora, já não é senão como simples calendários que guardamos dos dias perdidos, com a esperança de ver refletidas sobre as páginas as habitações e os lagos que não existem mais.
Quem, como eu, não se lembra dessas leituras feitas nas férias, que íamos escondendo sucessivamente em todas aquelas horas do dia que eram suficientemente tranquilas e invioláveis para abrigá-las.
Marcel Proust. 'Sobre a Leitura'
Tradução. Carlos Vogt
Editora Pontes, 2003
Marcel Proust. 'Sobre a Leitura'
Tradução. Carlos Vogt
Editora Pontes, 2003