sábado, novembro 19, 2011

Kholstomer de Leon Tolstoi - História de um Cavalo



















“Compreendi muito bem o que dizia a respeito dos açoites e do cristianismo. Mas ficou completamente obscura para mim a palavra seu, pela qual pude deduzir que estabeleciam um vínculo a ligar-me ao chefe das cavalariças. Então, não pude compreender de modo algum em que consistiria tal vínculo. Só muito depois, quando me separaram dos demais cavalos, é que expliquei a mim mesmo o que aquilo representava. Naquela época, eu não era capaz de entender a significação do fato de ser eu propriedade de um homem. As palavras ‘meu cavalo’, referindo-se a mim, um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas como as palavras ‘minha terra’, ‘meu ar’, ‘minha água’.

No entanto elas exerceram sobre mim enorme influência. Sem cessar pensava nelas e só depois de longo contato com os seres humanos pude explicar-me a significação que, afinal, lhes é atribuída. Querem dizer o seguinte: os homens não dirigem a vida com fatos, mas com palavras. Não os preocupa tanto a possibilidade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, como a de falar de objetos diferentes mediante palavras convencionais. Essas palavras, que consideram muito importantes, são, sobretudo, meu ou minha, teu ou tua. Aplicam-nas a todas as espécies de coisas e de seres, inclusive à terra, aos seus semelhantes e aos cavalos.

Além disto, convencionaram que uma pessoa só pode dizer meu a respeito de uma coisa determinada. E aquele que puder aplicar a palavra ‘meu’ a um número maior de coisas, segundo a convenção feita, considera-se a pessoa mais feliz. Não sei por que as coisas são desse modo; mas sei que são assim. Durante muito tempo procurei compreender isso, supondo que daí viria algum proveito direito; mas verifiquei que isso não era exato.

Muitas pessoas das que me chamava seu cavalo nem mesmo me montavam; mas outras o faziam. Não eram elas as que me davam de comer, mas outros estranhos. Também não eram as pessoas que me faziam bem, mas os cocheiros, os veterinários e, em geral, pessoas desconhecidas. Posteriormente, quando ampliei o círculo de minhas observações, convenci-me de que o conceito de meu – e não só com relação a nós, cavalos – não tem qualquer outro fundamento além de um baixo instinto animal, que os homens chamam sentimento ou direito de propriedade. O homem diz ‘minha casa’ mas nunca vive nela; preocupa-se só em construí-la e mantê-la. O comerciante diz ‘minha loja’, ou ‘meus tecidos’, por exemplo, mas não faz suas roupas com os melhores tecidos que vende na loja. Há pessoas que chamam sua uma extensão de terra e nunca a viram nem passaram por ela. Há outras que dizem serem suas certas pessoas que nunca viram nesta vida e a única relação que têm com elas consiste em causar-lhes dano. Há homens que chamam de suas certas mulheres, e estas convivem com outros homens. As pessoas não procuram , em sua vida, fazer o que consideram o bem, e sim a maneira de poder dizer do maior número possível de coisas: é meu. Agora estou persuadido de que nisso reside a diferença essencial entre nós e os homens. Portanto, sem falar de outras prerrogativas nossas, só por este fato podemos dizer, com segurança, que, entre os seres vivos, nos encontramos em nível mais alto que o dos homens. A atividade dos homens, pelo menos a dos homens com os quais tenho tratado, se traduz em palavras, ao passo que a nossa se manifesta em fatos”.

[...]

[Leon Tolstoi. "Kholstomer, de Lembranças e Narrativas". Obra Completa, vol. III. Tradução da novela por Milton Amado. Editora José Aguillar, Ltda. Rio de Janeiro, 1962.]




* Segundo Chklovski, Tolstoi se serve constantemente do método de singularização. Aqui a narração é conduzida por um cavalo e os objetos são singularizados pela percepçção emprestada ao animal, e não pela nossa. Nesta narrativa o cavalo nos dá uma lição de humanização, enquanto o homem aparece reificado pela visão que apresenta do direito  de propriedade. Digo, então, "Meu reino por um cavalo!" Perdoem-me os homens. E que a palavra Homem aqui estenda-se como uma equação que abarca todo ser humano. O Homem deve cultivar a PALAVRA-GESTO!