sábado, novembro 26, 2011

Desenredo













Do narrador  a seus ouvintes:

– Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.

Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.


Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.

Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano.

Até que deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que a ferira, leviano modo.

Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudo personagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude.

Ela - longe - sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a aguentar-se, nas defeituosas emoções.

Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso.

Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou - ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse.

Mas.

Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios.

Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou a mulher, a desconhecido destino.

Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.

Mais.

No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade - ideia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desafaz. Ele queria os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma.

Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil como fritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente.

O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado -  plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?

Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar - e qualquer causa se irrefuta.

Pois produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.

Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.

Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.


E pôs-se a fábula em ata.


Guimarães Rosa
'Tutaméia – Terceiras Estórias'

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Este conto de Guimarães é pródigo em sigularizações e estranhamentos, segundo a teoria de Chklovski. Esta peça é toda feita de lirismo e intensidade, marcada por um grande ensinamento trágico sobre os fatos que ligam o homem à sua errância no mundo. Como ilustra a frase "Esperar é reconhecer-se incompleto."

No plano temático, Guimarães parece apontar que a  verdade no amor é imprescindível, a traição -desde que o  é mundo é mundo -  é algo abominável e contrário a todo o princípio da arte e da ética no que tange à beleza e aprimoramento do ser. Exceto para aqueles que vivem enganando e enganando-se. Mas há quem se alimente criminosamente dela e prossiga em paz consigo e 'convolado', como diria Guimarães.

O narador não confere à personagem feminina a redençao da sua conduta reprovável. Quem a faz acreditar-se 'pura' é o personagem 'jó joaquim' que ficciona sua pureza para aceitá-la de volta. Neste sentido, o conto também apresenta-se  com  um viés eminentemente metalinguístico.  Trata-se de um jogo de espelhos, próprios da metanarração e da mise-en-abyme.

Trair a confiança alheia é um dos gestos mais reprováveis de um ser humano, desde Dante, Shakespeare e passando por Machado de Assis. Há quem estenda esta prática para além dos reis, alastrando a 'lepra' para todos oa planos das relações afetivas: cônjuges, amigos, patrões etc. Geralmente para este 'o céu é o limite'. O célebre Camões também nos diz que "contra o céu não valem mãos", estou plenamente de acordo. Aqui cabe repetir a setença imortal de Keats: 'A verdade é a beleza, a beleza a verdade!

A beleza reside na arte de criar e deve expandir-se na forma de vida do seu criador e na existência plena de todo o ser humano. "A finalidade da arte é elevar!", diz Fernando Pessoa. Se não for assim, diria Horácio, a montanha entrará em trabalho de parte e há de parir um camundongo. Registro que uma das marcas da escrita deste autor é o neobarroco, pontuado pelo uso de hipérbatos e ligado a uma escrita que tem por efeito a recriação semântica do texto mediante a fundação de neologismos e mot- valises. Estes recursos também estão presentes na poética de James Joyce.Tenho analisado este conto com os meus alunos da Pós-graduação da Fafire. Deixo-o aqui para eles!