segunda-feira, dezembro 22, 2014

Escritores Criativos e Devaneios: Freud

“A arte é, antes de tudo, criadora de símbolos” (Chklovski)















Salvador Dalí - The persistence of memory (1931). 


Freud estudou outras formas de arte (pintura, escultura), mas era o escritor: o romancista ou poeta que ele considerava quando se referia à natureza da criação artística. O primeiro estudo de Freud completamente dedicado a uma obra literária foi Delírios e Sonhos na “Gradiva” de Jensen. Dizem os estudiosos que foi Jung quem primeiro apresentou a Freud o romance de Wilhelm Jensen, autor alemão, no verão de 1906. O estudo analítico de Freud, realizado em 1907, foi enviado a Jensen que, dizem,  ficou envaidecido e grato a Freud.

Segundo E. Portella Nunes e C. H. Portella Nunes (1989), A novela de Jensen tinha tudo para fascinar Freud. Além de passar-se em Pompéia, cidade soterrada cujas escavações Freud comparava ao trabalho do psicanalista, arqueólogo da mente, a novela trata de sonhos e distúrbios da percepção. Dizem que Freud aproveita a análise da Gradiva para inserir um resumo de sua teoria dos sonhos e talvez o “primeiro esboço semipopular de sua teoria das neuroses e da ação terapêutica da psicanálise”, como nota Strachey.

O resumo da história de Gradiva é fornecido por Freud como uma introdução à sua análise da obra de Jensen. O romance conta a história de um jovem arqueólogo alemão, Norbert Hanhold, que fica fascinado pela imagem de uma jovem mulher esculpida num baixo relevo do Museu Arqueológico Nacional de Nápoles. Na noite seguinte, Hanhold tem um sonho angustiante: encontrava-se em Pompéia, no ano 79, exatamente quando o Vesúvio estava para entrar em erupção e destruir a cidade. No sonho, vê a Gradiva diante dele mas antes que possa avisá-la do perigo iminente, a Gradiva é sepultada pelas lavas do vulcão. Posteriormente, Norbert vai percebendo, através de um longo e complexo processo, a ligação entre a Gradiva e um amor de sua infância - Zoe Bertgang. Havia associado essa menina a uma mulher idealizada que o fascina - a Gradiva do baixo relevo. Seus sentimentos se deslocam, então, da mulher de mármore para a pessoa de Zoe. 





















A Gradiva de Jensen (do latim, "aquela que avança", feminização de Gradivus, um dos epítetos do deus romano Marte, Mars Gradivus, isto é, "Marte que avança") é um romance publicado em 1903 pelo escritor alemão Wilhelm Jensen, que teve grande influência na cultura europeia, sobretudo entre os surrealistas.




















(Freud)

O ensaio Escritores Criativos e Devaneios  é a maior contribuição de Freud para a compreensão da psicologia da criação artística. Esta é, aliás, a opinião de Peter Gay, na breve introdução que lhe faz. Neste texto Sigmund Freud se interessa pela natureza da criação imaginativa, associando o brincar infantil à criação poética:

Se ao menos pudéssemos descobrir em nós mesmos ou em nossos semelhantes uma atividade afim à criação literária! Uma investigação dessa atividade nos daria a esperança de obter as primeiras explicações do trabalho criador do escritor. E, na verdade, essa perspectiva é possível. Afinal, os próprios escritores criativos gostam de diminuir a distância entre a sua classe e o homem comum, assegurando-nos com muita freqüência de que todos, no íntimo, somos poetas, e de que só com o último homem morrerá o último poeta. (FREUD, 2006, p.149)

Freud pergunta se não devemos procurar na infância os primeiros traços da capacidade imaginativa. Para ele a ocupação preferida das crianças são os brinquedos e os jogos, e afirma que apesar de todo investimento em seu brinquedo, elas distinguem perfeitamente a realidade factual do ludismo que lhe proporciona o brincar, e sentem o prazer de unir sua imaginação ao mundo real que as circunda. Neste sentido, Freud sugere que ao brincar toda criança se comporta como escritor criativo, pois cria um mundo próprio. O autor afirma que a antítese do brincar não é o sério, mas o que é real:


(...) Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade? Seria errado supor que a criança não leva esse mundo a sério; ao contrário, leva muito a sério a sua brincadeira e dispende na mesma muita emoção. A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real. Apesar de toda a emoção com que a criança contextualiza seu mundo de brinquedo, ela o distingue perfeitamente da realidade, e gosta de ligar seus objetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis do mundo real. Essa conexão é tudo o que diferencia o ‘brincar’ infantil do ‘fantasiar’. (Idem)


O fantasiar dos adultos não é fácil de notar como as brincadeiras das crianças. Ao contrário, os adultos escondem suas fantasias, guardando-as como seu bem mais íntimo. Freud aponta que as forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória. Ao opor a realidade e o brincar infantil, tendo por base desenvolvimento humano, Freud diz que quando as pessoas crescem param de brincar, renunciando a esse prazer da infância. Mas, na realidade, esse prazer não é verdadeiramente renunciado. Ao parar de brincar, a criança em crescimento apenas abandona o elo com os objetos reais e, em vez de brincar, passa a  fantasiar. Constrói castelos no ar que chama de devaneios:

Não posso ignorar a relação entre as fantasias e os sonhos. Nossos sonhos noturnos nada mais são do que fantasias dessa espécie, como podemos demonstrar pela interpretação de sonhos. A linguagem, com sua inigualável sabedoria, há muito lançou luz sobre a natureza básica dos sonhos, denominando de ‘devaneios’ as etéreas criações da fantasia. Se, apesar desse indício, geralmente permanece obscuro o significado de nossos sonhos, isto é por causa da circunstância de que à noite também surgem em nós desejos de que nos envergonhamos; têm de ser ocultos de nós mesmos, e foram conseqüentemente reprimidos, empurrados para o inconsciente. Tais desejos reprimidos e seus derivados só podem ser expressos de forma muito distorcida. Depois que trabalhos científicos conseguiram elucidar o fator de distorção onírica, foi fácil constatar que os sonhos noturnos são realização de desejos, da mesma forma que os devaneios - as fantasias que todos conhecemos tão bem.  (Idem, p. 154)

No ensaio intitulado Freud e a Literatura, E. Portella Nunes e C. H. Portella Nunes (1989) dizem que para Freud, os elos mais importantes da relação criança/brinquedo e escritores criativos estão no sonho e no devaneio, como se o texto literário fosse um sonho do autor que por sua vez desencadeasse outros sonhos nos leitores. Tanto o autor ao produzir seu texto quanto o leitor realizam, simbolicamente, desejos reprimidos, tal como a criança faz através do seu jogo: manipula a realidade, cria “uma outra cena” onde tudo pode acontecer. Onde passado, presente e futuro misturam-se numa temporalidade sujeita apenas às rédeas do desejo. O que já foi voltará a ser; o que teria sido é presente para sempre. Diz Freud:

Para que nossa comparação do escritor imaginativo com o homem que devaneia e da criação poética com o devaneio tenha algum valor é necessário, acima de tudo, que se revele frutuosa, de uma forma ou de outra. Tentemos, por exemplo, aplicar à obra desses autores a nossa tese anterior referente à relação entre a fantasia e os três períodos de tempo, e o desejo que o entrelaça; e com seu auxílio estudemos as conexões existentes entre a vida do escritor e suas obras. (...) À luz da compreensão interna (insight) de tais fantasias, podemos encarar a situação como se segue. Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo uma lembrança de uma experiência anterior (geralmente de sua infância), da qual se origina então um desejo que encontra realização na obra criativa. A própria obra revela elementos da ocasião motivadora do presente e da lembrança antiga. (Idem, p.156)


Freud ressalta que não se deve esquecer que a ênfase dada às lembranças infantis da vida do escritor, deriva-se basicamente da suposição de que a obra literária, tal qual o devaneio, é uma forma de continuar ou substituir o que foi o brincar infantil. Para que desfrutemos dos nossos devaneios sem temor da vergonha, diz Freud que o escritor criativo nos seduz a liberarmos todo nosso princípio de prazer recalcado através da identificação com as personagens das obras, sobretudo, com o heróis e heroínas das obras literárias:

O sentimento de segurança com que acompanhamos o herói através de suas perigosas aventuras é o mesmo com que o herói da vida real atira-se à água para salvar um homem que se afoga, ou se expõe à artilharia inimiga para investir contra uma bateria. Este é o genuíno sentimento heróico, expresso por um dos nossos melhores escritores numa frase inimitável. ‘Nada me pode acontecer’! Parece-me que através desse sinal revelador de invulnerabilidade, podemos reconhecer de imediato Sua Majestade o Ego, o herói de todo devaneio e de todas as histórias. (Idem, p.155)

Quem é o herói das novelas populares que consegue sair são e salvo de todos os perigos e armadilhas dos homens e dos deuses? Nada mais, nada menos do que “sua majestade, o Ego”, diz Freud. É a identificação narcísica do leitor com o herói que faz com que novelas e romances tenham sucesso. E esse Ego é o elemento que une o verbo do escritor ao verbo dos homens:

(...) Mas quando um escritor criativo nos apresenta suas peças, ou nos relata o que julgamos ser seus próprios devaneios, sentimos um grande prazer, provavelmente originário da confluência de muitas fontes. Como o escritor o consegue constitui seu segredo mais íntimo. A verdadeira ars poetica está na técnica de superar esse nosso sentimento de repulsa, sem dúvida ligado às barreiras que separam cada ego dos demais. Podemos perceber dois dos métodos empregados por essa técnica. O escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias. Denominamos de prêmio de estímulo ou de prazer preliminar ao prazer desse gênero, que nos é oferecido para possibilitar a liberação de um prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas. Em minha opinião, todo prazer estético que o escritor criativo nos proporciona é da mesma natureza desse prazer preliminar, e a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma libertação de tensões em nossas mentes. Talvez até grande parte desse efeito seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha. Isso nos leva ao limiar de novas e complexas investigações, mas também, pelo menos no momento, ao fim deste exame. (Idem, pp.157-158)

A realização de todos os nossos desejos e fantasias é possível graças ao fenômeno da “sedução estética” através do devaneio artístico, ou seja, da obra literária. Para Freud, a literatura assume a mesma importância que o “prazer preliminar” (Vorlust) ocupa na relação sexual: rompe os limites da repressão permitindo a liberação de um prazer mais intenso e profundo (Endlust). O erotismo censurado e o narcisismo integram as formas possíveis do devaneio, daí seu caráter secreto e de vergonha. Sempre nos sentimos invadidos e censurados quando alguém parece querer desvendar nossa imaginação e nossos devaneios. Desse modo, toda arte é uma forma rebelde de libertação.

Freud –  Sigmund Freud (Viena,1856 – Londres, 1939), médico austríaco e fundador da psicanálise. Nascido em Freiberg, na Moravia (ou Pribor, na República Tcheca), em 6 de maio de 1856. Sigmund Freud era filho de Amália Freud e de Jacob Freud, e filho mais velho do terceiro casamento de seu pai.


REFERÊNCIAS

BELLEMIN-NOEL, Jean. Psicanálise e literatura. Trad. Álvaro Lorencini e Sandra Nitrini. S. Paulo: Cultrix, 1978.
BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas.  São Paulo, Paz e Terra, 2007.
FREUD, Sigmund. “Escritores Criativos e Devaneios”. In: ‘Gradiva de Jensen’ e  Outros Trabalhos”. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
NUNES, E. Portella e NUNES C.H.Portella (1989).  Freud e a Literatura. In: http://www.bernardojablonski.com/pdfs/graduacao/freud_literatura.pdf
RYCROFT, Charles. Dicionário Crítico de Psicanálise. Rio de Janeiro, Imago, 1975.

  

           

segunda-feira, dezembro 08, 2014

Do Bom e Do Mau Regionalismo – Gilberto Freyre
















(Nasceu em Recife, em 15 de março de 1900)

Observou Lafcadio Hearn na Ilha de Martinique que, entre aqueles Ilhéus, isto é, entre os relativamente letrados, o interesse pelas coisas estava na razão inversa da sua proximidade. A ilha pouco interessava e menos ainda o povoado que habitavam.
Em outras palavras, falta aqueles Ilhéus, e talvez lhes falte ainda, o senso, a consciência ou o sentimento local que os animasse para o gozo e para o aproveitamento de valores próprios, das coisas da ilha, das belezas que ali se revelavam a Lafcadio Hearn com um tão estranho encanto.
Dominava-os a tirania da distância que alucina e perturba de tal modo a visão de certos homens e de certos grupos, que só o remoto os interessa e os apaixona: as coisas de perto são como se não existissem. E quando se preocupam com essas coisas é para plasmar à semelhança do cartão postal ou do figurino exótico.
Ora, não há mal algum, antes grande bem ou vantagem, em viver qualquer indivíduo ou grupo em contato com cartões postais, os figurinos, as fitas de cinema, as revistas, os livros e jornais estrangeiros. Este contato é fecundante, excitante, estimulante.
O perigo está na tirania mística do exótico, em prejuízo ou com sacrifício, às vezes, de tão boas tradições locais, de tão boa prata da casa.
Sob esta tirania do exótico, sob esse absorvente prestígio místico da distância do Rio, sobretudo, cujos cartões postais constituem para grande número  de ideal estético – temos vivido, nestes últimos anos, certos grupos do Nordeste do Brasil.
Por isso se me afigura tão feliz, ainda que com ar melancólico de trem atrasado, a reação regionalista, esta pequena onda que ora se levanta em Pernambuco.
Menos forte, porém já sensível, será a consciência municipal ou o espírito de Urbs com que no Recife temos procurado excitar alguns esquisitões, inimigos do haussmanismo que nos ameaça.

O haussmanismo já reduziu o Rio à aquela cidade – Caravançarai, cuja repercussão sobre um temperamento fino vem agudamente fixada no romance do Sr. Moraes Coutinho: “Os Novos Bárbaros”.
O Rio, no conjunto de suas avenidas novas e dos seus Palácios Cosmopolitas, não passará dum amontoado inexpressivo de construções: imitá-lo será para o Recife o sacrifício da personalidade própria a um modelo que já é em si incolor, indistinto, inexpressivo.
Não me parece que seja mau o regionalismo ou o patriotismo regional, cuja ânsia é a defesa das tradições e dos valores locais contra o “FUROR IMITATIVO”. Não me parece que semelhante corrente de sentimento ponha em perigo a unidade brasileira em suas raízes ou nas suas fontes de vida.
Cuido que as diferenciações regionais, harmonizadas, serão, no Brasil, condição para uma Pátria independente na suficiência econômica e moral do seu todo.
Escrevia há anos, no crepúsculo, ainda no Império, o tumultuoso, arrítmico, mas às vezes sagaz Sylvio Romero: “A grandeza futura do Brasil virá do DESENVOLVIMENTO AUTÔNOMO de suas províncias. Os bons impulsos originais, que nelas aparecem, devem ser fecundados, aplaudidos...Não sonhemos um Brasil uniforme, monótono, pesado, indistinto, entregue à DITADURA de um centro regulador de idéias. Do concurso das diversas aptidões das províncias é que deve sair o nosso progresso.”
O bom regionalismo não encontrou ainda no Brasil quem melhor o fixasse ou o interpretasse do que Sylvio Romero nesta incisiva meia página. Regionalista no bom sentido de permitir a diversidade de aptidões dentro do seu seio, é por certo a Igreja de Roma, sem que desta variedade resulte sacrifício ou prejuízo para sua unidade.
O bom regionalismo está longe, e muito longe, do mau, que é o separatismo; que consiste na imposição dos interesses locais sobre os gerais. Este mau regionalismo fá tem atuado na política, na economia bralieira, com os mais lamentáveis efeitos.
Pernambuco, ou antes, o Nordeste, deve trazer à cultura brasileira uma nota distinta, um impulso original, uma criação sua. Aqui é a própria paisagem, nos seus valores naturais que é decorativa a seu jeito; e a arquitetura portuguesa adquiriu entre nós, nas “Casas Grandes” e nas “Casas fortes” dos engenhos, com a necessidade de defesa e a complexidade do domínio semifeudal, um ar próprio e inconfundível. Numa casa de engenho pernambucana, encontrou o arquiteto brasileiro, Sr. Armando de Oliveira, - que é um tão alto e belo talento-inspiração para o Pavilhão de Caça e Pesca na exposição do Centenário.
O Recife mesmo está ainda cheio de sugestões dessa ordem, ainda que os arcos  - sua melhor nota identificadora – tenham desaparecido para satisfazer caprichos  de simetria e de modernismo.
Mas assim como a Cidade do México, depois de atravessar um período semelhante ao que atravessamos, volta, com Acevedo, Mariscal e Rivera, às tradições locais de arquitetura e decoração, é possível que também o Recife volte ao espírito e às sugestões do seu passado.
*


Este artigo – publicado na “Revista do Norte” (Recife), número 5, de outubro de 1924, página 3-4, mostra que o regionalismo freyriano é anterior ao manifesto de 1926, tão negado pelos admiradores intransigentemente exclusivistas do Modernismo de 1922. Aqui já se esboça um manifesto regionalista, acentuando-se a diferença entre regionalismo e separativismo. Lembre-se de que, em 28 de abril de 1924, fundava-se  no Recife, o Centro Regionalista do Nordeste, durante o qual foi concebido o Congresso Regionalista de 1926.

terça-feira, março 11, 2014

Akira Kurosawa - Sonhos



PLACENTA PLANETA - Arnaldo Antunes


CARNAVAL - Arnaldo Antunes


 

árvore
pode ser chamada de
pássaro
pode ser chamado de
máquina
pode ser chamada de...
carnaval
carnaval
carnaval

Rosa Amarela
















rosa amarela
passarela
braço verde-terra

(Haicai inédito)
 

Sombra e Luz

















sombra e luz
calçada cinza
flor da menina

(Haicai inédito)

 

Cordão

 











 
 
 
 
 
cordão
azul-amarelo
calçada de sol
 
(Haicai inédito)

segunda-feira, fevereiro 24, 2014

Poesia e pintura abstrata: a música das cores


Jacineide TRAVASSOS[1]

POETRY AND ABSTRACT PAINTING: THE MUSIC OF COLOURS
 

ABSTRACT:


In this article we address the evolution of the Horatian doctrine of Ut Pictura Poesis, the flirtation between the arts, focusing on the relationship between space and time through a comparative analysis between poetry and abstract painting. We emphasize the virtues of words and colours, investigating the image-sound and image-movement relation. In conclusion, in our analysis, there is a structural homology between poetry and abstract painting in relation to the spatiality and temporality, which is also a category of music. The theoretical tools we apply to undertake comparative studies are critical guidance regarding aesthetics, literature and semiotics.
 

 

Keywords: Poetry. Painting. Aesthetics. Semiotics of Culture. Intersemiosis.

RESUMO:

Neste artigo procuramos abordar a evolução da doutrina horaciana da Ut Pictura Poesis, o flerte entre as artes, privilegiando a relação entre o espaço e o tempo através de uma análise comparativa entre a  poesia e a pintura abstrata. Ressaltamos as virtualidades das palavras e das cores, investigando a relação imagem-som e imagem-movimento. Concluímos, em nossa análise, que há uma homologia estrutural entre  as artes em questão no tocante à espacialidade e  temporalidade, sendo esta também uma categoria da música. Os instrumentos teóricos, que adotamos para empreender esse comparativismo, são referentes à crítica de orientação estética, literária e semiótica.

 PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Pintura. Estética. Semiótica da Cultura. Intersemiose.

INTRODUÇÃO
Sabemos que para investigar a relação entre linguagem e realidade na poesia e na pintura, temos que alargar o conceito de texto e entendê-lo semioticamente como discurso, processo que abarca todas as artes. O texto, no âmbito semiótico, é fenômeno  translinguístico e Jean Molino (1989, p.25), como lingüista, também nos adverte que a base para a resolução da aporia, com respeito à necessidade de se instituir um modelo geral de texto, consiste em atribuir um sentido metafórico e heurístico à sua noção. Pergunta-se Molino: “O historiador de arte em frente a um quadro, o arqueólogo frente a um monumento, o geógrafo frente a uma paisagem, o sociólogo frente a um movimento social estão na mesma posição de um intérprete junto a um texto?” (MOLINO, 1989, p.26). Molino diz ainda que poderíamos, como boa medida, acrescentar que o físico está diante da natureza como diante de um livro scrito, segundo a fórmula de Galileu, em signos matemáticos.

Antes de Jean Molino, Iuri Lotman (1996, p. 149)  -  no início do século XX -  ressaltou o talento poliédrico de Lomonossóv, um dos fundadores da semiótica da Cultura, para quem “o elo que une domínios diferentes da vida no planeta é a linguagem”(MACHADO, 2003, p. 24). Segundo Irene Machado (2003), a semiótica da cultura funda, com base no legado de Lomonossóv, o moderno conceito de texto como um novo domínio de idéias científicas onde operam as mais radicais formas de semioses. Os semioticistas russos defendem a concepção do texto como unidade básica da cultura, e não do sistema lingüístico. Nesse sentido, uma dança, uma cerimônia, uma obra de arte e muitos outros produtos e manifestações culturais são considerados texto.
Os teóricos que tratam da intersemiose lançam luz sobre as mesmas questões abordadas por Molino. Julio Plaza (1987), autor d’A Tradução Intersemiótica, aponta Jakobson como o primeiro a discriminar os tipos de tradução: a interlingual, a intralingual e a intersemiótica.  Esta última que nos interessa  particularmente,   também   denominada transmutação, foi por ele definida como aquela que consiste na interpretação dos signos não verbais, ou de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema, a pintura e vice-versa.  Diz Dominique Maingueneau que:
 
a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de troca entre vários discursos [...]. A prática discursiva se define pela unidade de um conjunto de enunciados, e também é uma prática intersemiótica que integra produções na dependência de outros domínios semióticos (pictural, musical, etc.). ( MAINGUENAU, 1984, p.1-13)
 
Etienne Souriau (1983, p.11-13), em seu livro intitulado A Correspondência das Artes – Elementos de Estética Comparada, partindo de um aforismo de Victor Hugo: “O vento são todos os ventos” cria a paráfrase: “A arte são todas as artes”. Porém, Souriau afirma que a pesquisa, neste domínio, só será interessante se banir e interdisser severamente as metáforas imprecisas, as analogias confusas que são evocadas ao se transpor arbitrariamente para uma arte a linguagem de outra. A respeito desta mesma questão, diz-nos Karel Boullart, professor da Universidade de Gand:
 
As intuições mais corriqueiras a respeito das ‘correspondências’ das artes tendem, em sua maioria, a cair na metáfora. Diz-nos que existem sonetos esculpidos e romances de composição arquitetônica, mas um soneto não é uma escultura e um romance não é uma catedral. Mesmo um poema manifestamente composto, segundo o princípio ‘música antes de mais nada’ (Verlaine) não é música propriamente dita: é, em primeiro lugar e fundamentalmente, um poema. (BOULLART, 1987, p.72)
 
Acreditamos que Molino, Lomonossóv, I. Lótman, Julio Plaza, Jakobson, Maingueneau, Etiene Souriau e Boullart, implodem o paradigma tradicional do texto legando o critério de textualidade e leitura, não só ao literário, mas também ao vasto domínio das várias linguagens e sistemas de significação. Os teóricos que citamos enfatizam bastante o fato de existir, em cada modalidade textual, qualias diferentes que alteram o seu modo de significar. Daí a necessidade de nos afastarmos das metáforas e analogias imprecisas, cientes que as artes dialogam entre si, mas conservam sua materialidade artística própria. Em nossa investigação, afirmamos uma correspondência entre a poesia e a pintura, cientes de que há uma identidade de estruturas em uma variedade de meios.
A intersemiose, o diálogo entre as artes, seja música, pintura ou cinema etc., jamais trata-se de um anseio eminentemente da arte contemporânea. Muitos o quiseram: Os gregos, Diderot (em carta endereçada a Abbé Batteaux escreveu: “Comparar as belezas de um poeta com as de outro poeta é coisa que já se fez milhares de vezes. Mas congregar as belezas comuns da poesia, da pintura e da música (…) eis o que resta fazer e o que vos aconselho a acrescentar ao vosso Beaux-Arts réduit à un même principe.[2] os poetas franceses, sobretudo Baudelaire (Les Parfums, les couleurs et les sons se répondent), Rimbaud em Voyelles (A noir, E blanc…), Verlaine (De la musique avant toute chose) e J. K. Huysmans (com seu personagem Des Esseintes), que alegoriza a própria estética no seu romance simbolista A Rebours. Outro exemplo dessa interatividade está em Scriabin n’O Poema do Êxtase  (interdiscursividade entre dança, música, cores, perfumes), lembramos ainda o ideário de uma completa fusão entre escultura abstrata e tecnologia de construção expresso por J. J. P. Oud e retomado na arquitetura por Walter Gropius e Le Corbusier. No âmbito das correspondências, sincronização dos sentidos e signos poderíamos citar exaustivamente, se é que já não o fizemos.
 
Ut pictura poesis 
Como vimos, a noção de parentesco entre as diversas linguagens artísticas constitui um topos revisitado e remineralizado ao longo dos séculos, independente da qualia artística de quem o realiza. A relação texto/tela, também não é uma prática recente, embora pouco explorada ainda nos estudos contemporâneos. Jean Hagstrum (1958) em The Sister Arts of Literary Pictorialism and English Poetry from Dryden to Gray, embora atenha-se à tradição inglesa, retraça a história da interrelação entre a pintura e a poesia partindo de suas origens. Segundo Hagstrum dois nomes apresentam-se como basilares nesta intersemiose: Horácio e Simonides de Cós. Horácio, que criou a expressão Ut Pictura Poesis em sua Ars Poetica, (anos 14 e 15 A.C.) postula: “Ut Pictura Poesis: erit quae, si propius stes, te capiat magis, et quaedam, si longius abstes; hace amat obscurum, volet hacc sub luce videri, iudicis argutum quae non formidat acumen.”( HORÁCIO, 1989, p.73)[3]
A teoria implícita no axioma horaciano orientou, por séculos, o caminho por onde havia de trilhar as discussões sobre as artes, mantidas sob a custódia das relações entre as representações imagéticas (pintura) e retóricas (poesia) fundadas sob a distinção valorativa: signos naturais e signos artificiais, respectivamente. Como salienta João Alexandre Barbosa (1994, p.11), esta concepção dominou, sobretudo, os períodos clássico e romântico na história da arte e da literatura. As comparações entre poesia e pintura eram mote perpétuo. Plutarco atribui a Simonides de Cós a formulação de que “a pintura é poesia muda e a poesia é uma pintura falante.” Baumgarten adverte que “é próprio da pintura representar o que é composto; e este procedimento é um procedimento poético.” (BAUMGARTEN, 1993, p.26)
Gotthold Efrain Lessing (1998) é apontado pelos historiadores da arte como o melhor leitor de Horácio em sua época, pois, na verdade, Lessing o releu dando um grande passo adiante de suas teorias. O seu tratado sobre as artes literárias e pictóricas data de 1766, foi publicado sob o título de Laokoon, ou Os Limites da Pintura e da Poesia. Suas indagações a respeito das artes são apresentadas a partir do famoso conjunto escultórico Laokoon, que representava o sacerdote troiano homônimo e seus dois filhos no momento de suas mortes, sob os encalços de duas serpentes que os enroscam e os mordem. Uma das versões sobre o fato narra que tal castigo deveu-se ao fato de Laokoon haver tocado os preceitos de Apolo. A obra é atribuída ao escritor grego Alexandre de Rodes em co-autoria dos filhos Atenodoro e Apolidoro.
Laokoon, aponta Aguinaldo Gonçalves (1994, p.31) em seu Laokoon Revisitado. Relações Homológicas Entre Imagem e Texto, pode ser definido como a “conjunção de várias tendências que se unem para um único propósito”, ou seja, criticar o arqueólogo Johann Joachim Winckelmann em suas Reflexões Sobre a Imitação das Obras Gregas na Pintura e na Escultura (Gedanken Über die Nachahmung der Grie Chischen Werker der Malerei und Bildhaverkunst, 1755). Podemos inferir, pela sua linha de abordagem, que Winckelmann também se baseia na Arte Poética de Horácio, assim como no Tratado Sobre o Sublime de Longino, privilegiando a obra escultórica como base de seus estudos. Porém seus argumentos revelam frágeis noções e impressionismos sobre a literatura e as artes visuais, sobretudo quando compara o Laokoon com a Eneida de Virgílio e o Filoctetes, de Sófocles. De modo contrário porta-se Lessin (1998, p.145) posto que desloca o comparatismo entre a pintura e a poesia do campo movediço da dicotomia: signos naturais vs. signos artificiais para a questão do espaço e do tempo.
Lessing possibilitou-nos pensar as artes pictóricas e poéticas a partir do uso diferenciado de seus meios de expressão: pintura (mímese do visível, dos corpos), poesia (mímese das ações). Enfim, Lessing estabeleceu a pintura como a arte do espaço, por excelência, e a poesia arte do tempo. Embora estas noções representassem um avanço para a época (daí a nossa obrigação de revisitá-las), hoje tornou-se inconcebível tal distinção, seja no campo da física, como bem nos demonstra Einstein, seja no campo das artes, à luz das diversas correntes da filosofia, citamos a Poética do Espaço de Gaston Bachelard como exemplo e, sobretudo sob o prisma da semiótica.
Mukarovsky (1990, p.81) critica Lessing por pensar que as artes são limitadas pelo caráter de seus materiais e por acreditar que os artistas não devem tentar ultrapassar os limites impostos por eles. Deste modo, considera que sua idéia base, hoje, encontra-se ultrapassada. A. Gonçalves, ao revisar o Laokoon, credita razão aos argumentos de Mukarovsky. Diz que “se aproximarmos a câmara às conquistas da pintura e da poesia anteriores ao romantismo, notaremos que já para aquela época tal idéia não procedia.” (GONÇALVES, 1994, p.32). Adverte que, da maneira como Lessing conjecturou a respeito da poesia e da pintura, os signos assumem, em sua teoria, um alto grau de superficialidade; são postos apenas quanto imitadores de corpos e ações. Sabemos que as artes não seguem este caminho ao correr dos tempos.
Diz Northop Frye que há um grau de razoabilidade incontestável que fale-se do ritmo “quando se desenvolve no tempo, e desenho, quando se distribui no espaço” (FRYE, 1993, p.81). Mas salienta que:
 
[...] todas as artes possuem um aspecto temporal e um espacial, embora estas categorias se desenvolvam de acordo com as possibilidades materiais de cada arte e seu modo de estruturação. Referindo-se à literatura, especificamente, ressalta que as obras literárias também se movem no tempo, como a música, e se estendem em imagens, como a pintura. (FRYE, 1993, p.81)
 
A Ut Pictura Poesis é comum a muitas épocas. Segundo Mario Praz, em seu texto Literatura e Artes Visuais, “desde os tempos remotos tem havido mútua compreensão e correspondência entre a pintura e a poesia”. (PRAZ, 1982, p.2) Diz-nos que idéias foram expressas por meio de pinturas, não só nos hieróglifos egípcios, como através de uma “longa e assaz copiosa” tradição simbólica, parte da qual foi brilhantemente evocada por Edgar Wind (1958), em seu livro acerca dos mistérios pagãos da Renascença (Pagan Misteries in the Renaissance).
No Renascimento, a relação poesia/pintura parecia inevitável, a exemplo do pintor Botticelli e dos poetas Policiano e Ficino, que compunham influenciando-se mutuamente. Muitos poetas, como Ariosto e Aretino, valeram-se de técnicas pictóricas para escrever. Pintores, tais como os simbolistas Gustave Moreau, Rodolph Bresdin, Odilon Redon, o expressionista Munch, entre muitos outros, extraíram idéias e imagens dos escritos de poetas e romancistas. Mas, em se tratando de um estudo intersemiótico, devemos afastar-nos das metáforas e analogias imprecisas, cientes que as artes dialogam entre si, porém conservam sua materialidade de linguagem e artística.
 
Poesia e pintura abstrata
 
Vimos que, dentro do enfoque da teoria de Lessing, com base na teoria clássica da mímese, o espaço é o lugar ocupado pelos corpos, pelos elementos estruturais da pintura: ponto, linha, superfície e volume. De acordo com a semiótica, lembramos que o espaço deixa de ser simplesmente um lugar ocupado pelas coisas e ganha força de linguagem. Devemos revisitar a importantíssima teoria de Lessing, mas não podemos aceitar, ao modo de Mukarovsky, Frye e A. Gonçalves, no domínio das artes, a separação rígida das categorias de espaço e tempo.
Bem sabemos que a poesia, a literatura, é imagem-som. Assim, temos uma só dimensão espácio-temporal na poesia de Ungaretti:
 
ROSA EM CHAMAS

 sobre um oceano
 de campainhas
 subitamente
 flutua outra manhã 

(UNGARETTI, 2003, p.153)[4]

 





Vejamos outro exemplo em Guilherme de Almeida:

 
INFÂNCIA 

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora” 
(ALMEIDA, 2004, p.26)



Em Ungaretti a Imagem “oceano de campainhas” é indicadora de uma grande hiperestesia, pois a água torna-se metaforicamente sonora, ao passo que indica também passagem de tempo: “flutua outra manhã”. No haicai de Guilherme de Almeida, igualmente hiperestésico, a “amora e o sol”, degustados em simultâneo, instauram o movimento do tempo, a captação do instante passado no tempo presente, como bem indica a expressão “chamava-se ‘Agora’ ”. Guilherme de Almeida tenta captar, pintar ou fotografar o instante da infância passada, ao modo de uma recordação lírica, como a concebeu Emil Staiger (1975, p.59-60): fusão do passado com o presente e fusão do eu com o outro. Do mesmo modo, em homologia estrutural com a poesia, dá-se com a pintura abstrata. Sendo o ponto índice de uma linha e formador dinâmico de outras figuras na tela, como demonstra-nos Kandinsky, admitimos, também, uma temporalidade na realização da dinâmica interna do quadro:
 








(Fig.1. Kandisnky, Improvisação Sonhadora)[5]

 
Ao estudar semioticamente a tela Improvisação Sonhadora, de Kandisnsky, diz Walda Leite que “o objeto é percebido, não como parte do espaço, mas por sua continuidade”. (LEITE, 1985, p.20) Adverte, ainda, que, desta maneira, o objeto passa a ser signo, pois mantém uma profunda dialética com o tempo, que, no caso, “é criado pela repetição de traços que espacializam a diacronia do movimento”. (LEITE, 1985, p.21) Lembramos também que o elemento temporal pode ser reconhecido através da dimensão longitudinal dos elementos estruturadores do quadro. Leiamos um trecho de O cão Sem Plumas (Paisagem do Capibaribe) de João Cabral de Melo Neto:

 

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada. 

O rio ora lembrava
a língua mansa
de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão

                                                Aquele rio
era como um cão sem plumas.
nada sabia da chuva azul,
da fonte cor de rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro
dos peixes de água,
da brisa na água 

[...]

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes
jamais se abre em peixes.

Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
abre-se numa flora
suja e  mais mendiga

como são os mendigos negros.
abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro 

[...]

(MELO NETO, 1994, p.105-106)
 

Cabral, como assinala Secchin (1985, p.77), vai gradualmente combatendo o caráter impositivo da metáfora em um processo contínuo de desconstelização da palavra, propõe a imagem do cão como rio, depois atribui ao cão e ao rio o que é próprio de um pano sujo e do pássaro: “plumas”. A ideia de temporalidade já se manifesta no elemento “rio” que se muta e simbiotiza-se, por alusão, com os elementos da paisagem por onde passa. A fanopeia é evidenciada na gradação de cores do poema: azul, cor de rosa e negro. As cores suaves, azul-rosa, são signos de uma amenidade que o rio Capibaribe não conhece. Domina o grito social da paisagem de um homem-anfíbio que vive na miséria. A cor que evidencia esse elemento é o negro, esta assinala a vida de lama do homem na lama. O rio-ser-paisagem instaura o sublime negativo.  
O Cão Sem Plumas assinala o caráter impermanente e mutável do tempo, do sentido das palavras e de todas as coisas, o “rio” não é o solista dessa música das palavras, mas se funde com o ser, com elementos vegetais, minerais e da cultura, antes aparece como um substantivo-caleidoscópico que se repete dando ritmo, sonoridade, instaurando um poema-jazz, onde tudo está em tudo. Essa repetição também assinala o  poeta não só como um ser engajado, mas como trabalhador das palavras. Podemos dizer, ao modo de Haroldo de Campos, que Cabral é um geômetra engajado. Contemplemos Mondrian:
                 (Fig.2.  Mondrian, Broadway Boogie-Woogie)[6]




Segundo Meyer Shapiro (2001, p.73-84), Mondrian, na tela em questão, caminha em direção à nova tendência voltada para a simetria, clareza e a legibilidade de uma arte que se materializa no questionamento e recombinação da sua própria matéria: cores primárias - branco, azul, vermelho e amarelo - linhas verticais e horizontais, enfim, ao abstrato, à “pintura pura”, ao neoplasticismo. A relação dessa tela com o abstrato e com a música é evidente, as unidades, verticais e horizontais, de cada conjunto de cores foram meticulosamente recombinadas e embaralhadas, ao modo da palavra “rio” no Cão Sem Plumas de João Cabral de Melo Neto, permanecem o geometrismo das figuras oblongas e quadradas mas sempre caleidoscopicamente recombinadas de modo a instaurar, simultaneamente, ordem e movimento. Vale ressaltar que o uso dos arranjos de cores primárias, na sua fase neoplasticista, estabelece ainda uma ligação com a sua fase neo-impressionista. Ressalto que ao criar suas telas de modo abstrato, Mondrian, como Cabral, não abdica do seu grito social, pois jamais recusa a realidade mas a aparência da realidade. Desse modo, exorta seu espectador a olhar a vida e a tela criticamente, mais uma vez trata-se de um geometrismo engajado
O título da tela, Broadway Boogie-Woogie,  já insinua um diálogo com a música e a dança, enfim com as categorias do movimento e da temporalidade. Como assinala Meyer Shapiro “[...] mesmo sem sabê-lo, provavelmente pensaríamos em música ao olhar esta tela maravilhosamente viva, colorida e repleta de jazz.” (SHAPIRO, 2001, p.79) Não esqueçamos também que a poesia é a dança das palavras, expressão do pensamento por imagem-som.
 
Conclusão
 
Como atestam os teóricos da literatura, à época do seu surgimento, no século XIX, a literatura comparada que era concebida como subsidiária da historiografia literária punha em relação apenas duas literaturas diferentes e preocupava-se, sobretudo, com a migração de um elemento literário de um campo a outro, ou seja, com as influências que exercia uma literatura nacional sobre outra. O comparatismo literário mantinha-se, desta forma, sob uma forte base de valor axiológico e resultava em um dado ecumênico falho. Visto que, como assinalou P. Brunel (1990, p.2), Pichois e Rosseau, “a reivindicação nacionalista é condenável pois sendo política, é frequentemente acompanhada de pretensões a superioridades étnicas.” De início o comparatista prestou-se a julgar a originalidade de cada literatura.
No século XX, o conceito de originalidade foi intensamente refutado por teóricos como Tinianov, Mikhail Bakhtin, Julia Kristeva, entre outros, sendo substituído pela noção de intertextualidade. Sabendo-se, hoje, que a literatura nasce da literatura e que esta trata-se de um único palimpsesto  raspado  e reescrito sem cessar ao longo dos tempos, a literatura comparada ampliou seu método de abordagem e comprova que a obra literária produz-se em um constante diálogo de textos, por retomadas e trocas. Deste modo, supera a função, a priori, niveladora e internacionalista, convertendo-se em uma disciplina que põe em relação diferentes áreas das ciências e das artes, expandindo-se no vasto domínio das relações intersemióticas. Como chama-nos a atenção Jean Molino, Maingueneau, Boullart, entre outros teóricos que citamos, temos que alargar o conceito de texto, para além de suas propriedades puramente linguísticas, sistematizá-lo enquanto fenômeno traslingüístico, se pretendemos realizar uma exegese eficaz da relação entre as artes.
A interdisciplinaridade, no que se reporta ao comparatismo, não é novidade no campo das relações interartísticas – se lembrarmos o já citado estudo de G. E. Lessing com o seu Laokoon, ou os Limites da pintura e da poesia (1766) já tão distante de nós – mas as relações mútuas entre as artes têm sofrido muitas restrições. Há ainda resistências em admitir-se que a comparação dá-se, também, no ultrapassar as similaridades, que o comparatismo pode operar-se pelo confronto de elementos, por vezes mesmo, díspares. Tais questões não estão suficientemente avançadas no estado atual dos estudos em pauta e inúmeras pesquisas ainda estão por fazer.
O estudo da literatura comparada alcança, atualmente, o terreno das artes que constituem, por si, partes de uma totalidade: a Estética. O comparatista sem deixar de ter a literatura como principal objeto de investigação, deve interrogá-la, entendendo-a não como um sistema fechado em si mesmo, mas na sua implicação com outros códigos, sejam eles picturais, musicais, cinematográficos etc.
No estudo da representação literária calcado na abordagem intersemiótica – como o que empreendemos através das poesias e telas abstratas que estudamos – a pesquisa é interessante se banir e transcender, como nos disse Souriau, as metáforas imprecisas que são evocadas ao se transpor arbitrariamente para uma arte a linguagem da outra. É preciso estarmos atentos ao fato de que pode haver similaridade entre a tradução de uma idéia artística em literatura, pintura, música, cinema, etc, mas cada linguagem traz consigo recursos peculiares e trata o assunto de modo específico. As várias artes possuem cada qual seu código artístico, sua evolução individual, de ritmo diferente. Daí a riqueza da comparação entre elas. Temos que ser rigorosos metodologicamente, se objetivamos consistência em um campo que, a princípio, parece ser vago e de difícil acesso.
Com base nas análises que fizemos, inferimos que há uma conjunção retórica entre a poesia e a pintura abstrata. Ambas se valem da imagem para instaurar a espacialidade. Afirmamos ainda que o texto poético, através da sequencialidade e da recordação lírica, dialoga com a categoria temporal. A pintura abstrata instaura o tempo por meio do movimento das formas e cores. Fica evidente que as artes em questão, ao agenciarem a temporalidade, assumem um parentesco também com a música. Enfim, poesia é sobretudo imagem-som e pintura abstrata imagem-movimento,  ambas música das cores.
 
REFERÊNCIAS
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BRUNEL, P.; PICHOIS, C.; ROUSSEAU, A. M. O Que é Literatura Comparada? São Paulo: Perspectiva, 1990. 
DIDEROT. In: ASSEZAT, J et TOURNEUX, M. Ouvres Complèts de Diderot. Paris: Garnier, 1875. 
FREY, Northop. Crítica Ética: Teorias do Símbolo. In: Anatomia da Crítica. São Paulo: Cultrix, 1993.   
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  ____________________. Laokoon Revisitado. Relações Homológicas Entre imagem e Texto. São Paulo: Edusp, 1994.  
  HAGSTRUM, Jean H. The Sister Arts: The Tradicion of Picturalism and english Poetry from Dryden to Gray. University of Chicago Press, 1958. 
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   MACHADO, Irene. Escola de Semiótica. A Experiência de Tártu-Moscou Para o Estudo da
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   PRAZ, M.  Literatura e Artes Plásticas. São Paulo: Cultrix, 1982.
   SECCHIN, Antonio Carlos.  João Cabral: A Poesia do Menos. São Paulo, Duas
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  SCHAPIRO, Meyer. Mondrian. A Dimensão Humana da Pintura Abstrata. São Paulo:Cosac
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   SOURIAU, Étienne. A Correspondência das Artes. Elementos de Estética Comparada. São
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   STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. 
  UNGARETTI, Giuseppe. A Alegria. Edição bilíngue, tradução de Geraldo Holanda  Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 2003.
 
   WIND, Edgar. Pagan Misteries in the Renaissance. Londres: Faber and Faber, 1958.






[1] Universo (Universidade Salgado de Oliveira). Gestora da Pós-graduação em Literatura Brasileira e Arte. Recife, PE, Brasil.CEP: 51150-001.
[2] DIDEROT apud ASSEZAT, J et TOURNEUX, M (1875). Ouvres Complèts de Diderot. Paris, Garnier.
[3] HORÁCIO (1989). “Arte Poética”. In: Crítica e Teoria Literária na Antiguidade. Rio de Janeiro, Ediouro, p.73, tradução de David Jardim Júnior: Um poema é como um quadro: quanto mais perto estiverdes dele, mais vos impressionará, mas deveis ficar a uma boa distância; esse precisa de um canto bastante escuro, mas aquele necessita de luz plena, e resistirá ao cuidado exame do crítico de arte; esse só vos agradará a primeira vez em que  for visto, mas aquele vos deleitará tantas vezes quanto seja olhado. 
[4] Texto original. ROSE IN FIAME : "Su un oceano/ Dis scampanelli/ Repetina/ Un lattra matina"
[5] 1915,óleo sobre tela, pode ser visto em Munique no Staatsgalerie moderner Kunts. 
[6] Mondrian: Broadway Boogie-Woogie, 1942-43. Coleção, TheMuseum of Modern Art, Nova York. Doação  anônima.